quarta-feira, 29 de maio de 2019

Jesus era um Criacionista de Terra Jovem? (Marcos 10.6; Mateus 19.4)




Já vimos que existem argumentos bem ruins a favor do Criacionismo de Terra Jovem. E, acredite, quando se estuda um pouco dos textos relevantes você vê que o que parecia óbvio era apenas uma interpretação anacrônica. Existe, porém, um texto do Novo Testamento que os Criacionistas de Terra Jovem amam usar, mas que de fato é apenas mais um texto fora de contexto que não implica o que eles querem, mas, ainda assim, eles tratam como um “xeque-mate”. Os dois textos paralelos que são relevantes para essa discussão são os seguintes:

E, aproximando-se dele os fariseus, perguntaram-lhe, tentando-o: É lícito ao homem repudiar sua mulher?
Mas ele, respondendo, disse-lhes: Que vos mandou Moisés?
E eles disseram: Moisés permitiu escrever carta de divórcio e repudiar.
E Jesus, respondendo, disse-lhes: Pela dureza dos vossos corações vos deixou ele escrito esse mandamento;
Porém, desde o princípio da criação, Deus os fez macho e fêmea.
Por isso deixará o homem a seu pai e a sua mãe, e unir-se-á a sua mulher,
E serão os dois uma só carne; e assim já não serão dois, mas uma só carne.
Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem.
Marcos 10:2-9

Então chegaram ao pé dele os fariseus, tentando-o, e dizendo-lhe: É lícito ao homem repudiar sua mulher por qualquer motivo?
Ele, porém, respondendo, disse-lhes: Não tendes lido que aquele que os fez no princípio macho e fêmea os fez,
E disse: Portanto, deixará o homem pai e mãe, e se unirá a sua mulher, e serão dois numa só carne?
Assim não são mais dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem.
Mateus 19:3-6

Você pode estar se perguntando: “por que você não colocou apenas o versículo relevante (Mc 10.6; Mt 19.4)?” Simplesmente porque texto fora de contexto é pretexto. E o contexto em que palavras são usadas define seu sentido. Quer ver como? Simples, considere o seguinte:

E dizendo: Onde está a promessa da sua vinda? porque desde que os pais dormiram, todas as coisas permanecem como desde o princípio da criação. 2 Pedro 3:4

Irmãos, não vos escrevo mandamento novo, mas o mandamento antigo, que desde o princípio tivestes. Este mandamento antigo é a palavra que desde o princípio ouvistes. 1 João 2:7

Mas todas estas coisas são o princípio de dores. Mateus 24:8

Se nós fizermos exegese do mesmo jeito que os Criacionistas de Terra Jovem fazem em Mateus 19.4 e Marcos 10.6, então teremos que interpretar que, de acordo com 2 Pedro 3.4, todas as coisas estão iguais a quando foram criadas (o que contradiz a teologia deles), que 1 João 2.7 fala de um mandamento que foi dado a Adão e Eva (quando, na verdade, foi dado em Levítico 19.18), e que ainda não existiam dores no tempo de Jesus, mas que o princípio das dores será em um futuro (sendo que as dores a que ele se refere são as dores dos momentos finais).
Vê? É muito fácil tirar um texto do contexto e definir palavras de acordo com a teologia a qual deseja seguir. Por isso, Gordon Fee e Douglas Stuart dizem que avaliar o contexto literário é a “tarefa mais crucial da exegese”.[1] Essa análise requer o reconhecimento de que palavras só fazem sentido dentro de frases, e que frases só tem sentido quando lidas de acordo com as frases anteriores e posteriores.[2] Ao avaliar tudo isso, a questão mais crucial é: “Qual é a razão disso?”.[3]
Mas então, do que Jesus estava falando nos textos citados? Do princípio da criação dos seres humanos e do casamento. Isso não é uma adição ao texto, mas uma simples conclusão interpretativa a partir do contexto. Sobre o que foi falado antes? Divórcio. Qual a resposta de Jesus? Que Adão e Eva não deveriam se separar, pois eram uma só carne. Qual a razão de Jesus ter respondido isso? Porque a pergunta foi sobre casamento e divórcio. Simples, não?
Como resposta a esse argumento, os Criacionistas de Terra Jovem usam sua tática de colocar medo em seus seguidores e dizem que essa interpretação é fruto de “uma humanidade que tenta adicionar à Escritura para mudar o sentido do que a Escritura diz para ‘corrigir’ a Palavra de Deus para que ela se encaixe nas ideias de homens falíveis sobre o passado”[4] O argumento é que nós, que estamos tentando corrigir a interpretação deles, na verdade, estamos tentando corrigir a Bíblia. É parte do jogo sujo dos Criacionistas de Terra Jovem, mas fazer o que?
Mas eles fazem ainda pior, tentando dizer que nós somos comparáveis à Testemunhas de Jeová, que mudam “era Deus” para “era um deus” em João 1.1.[5] Bodie Hodge diz:

Tanto as Testemunhas de Jeová quanto os criacionistas de terra antiga pegam ideias de fora e a impõem na Bíblia para que ela signifique algo diferente do que aquilo que o texto diz. Essencialmente, ou é a mistura de crenças religiosas unitaristas, ou, no caso, misturar as crenças religiosas humanistas seculares (ex.: milhões de anos).[6]

Bom, vamos fazer a mesma comparação deles e usar sua técnica milenar de “leitura simples” das Escrituras e ver como as Testemunhas de Jeová se aproveitam disso. Considere os seguintes textos:

Ouvistes que eu vos disse: Vou, e venho para vós. Se me amásseis, certamente exultaríeis porque eu disse: Vou para o Pai; porque meu Pai é maior do que eu. João 14:28
Jesus lhe disse: Por que me chamas bom? Ninguém há bom, senão um, que é Deus. Lucas 18:19

Ora, parece que considerando esses textos e a leitura simples deles, temos que concordar que Jesus não é Deus. Mas há ainda mais! Apocalipse 3.14 chama Jesus de “o princípio da criação de Deus”! Ora, não só Jesus não é Deus, como é o primeiro ser criado por ele! Seguindo os mesmos princípios dos Criacionistas de Terra Jovem, justificamos o Arianismo![7]
Mas então aqueles que tentam entender esses textos no contexto maior da Bíblia e que a estudam por saberem que ela é complexa estão encaixando ideias religiosas de que Jesus é Deus no que o texto diz? É claro que não.[8]
No restante do artigo do Answers in Genesis, é citado o comentário de um Rabino a respeito de Gênesis como tentativa de dizer que “no princípio da criação” implica no princípio da criação do mundo. Contudo, o texto citado especificamente diz: “Sobre o mundo, ou sobre o homem [...] ‘desde o princípio da criação do mundo’, é uma forma de falas normalmente usada pelos Judeus”.[9] Ou seja, a formula judaica adiciona “do mundo” para especificar o que quer dizer. Sendo assim “princípio da criação” não se refere, necessariamente, ao princípio do mundo. De fato, se interpretar "princípio da criação do casamento" implica em uma adição, então interpretar "princípio da criação do mundo" também faz o mesmo.
Mas o que mais pode ser dito? Existe uma possibilidade interessante de Jesus estar falando que Deus fez homem e mulher no livro de Gênesis. E existe um bom argumento para essa posição: Jesus falava aramaico e hebraico. O livro de Gênesis é chamado pelos judeus de “bereshit”, ou seja, no princípio. Quando Jesus diz “Não tendes lido que aquele que os fez no princípio macho e fêmea os fez” em Mateus (um livro para o público judeu), existe a possibilidade de ele estar falando “não tendes lido em Bereshit que aquele que os fez macho e fêmea os fez”. O mesmo pode ser entendido em Marcos, com “no livro da criação, Deus os fez macho e fêmea”.
Apesar de essa ser uma possibilidade interessante, fica mais evidente que Jesus, pelo contexto da conversa, estava falando do princípio da raça humana e, consequentemente, do casamento. Isso não é uma adição ao texto, apenas uma interpretação honesta do texto em seu contexto. Portanto, a interpretação de terra jovem é uma violação dos princípios da hermenêutica, de modo que viola o contexto apenas para significar o que os Criacionistas de Terra Jovem querem.




[1] FEE, Gordon D; STUART, Douglas. Entendes o que lês?: um guia para entender a Bíblia com auxílio da exegese e da hermenêutica, 3ª Ed., São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 35
[2] Ibid.
[3] Ibid. p. 36
[4] Answers in Genesis, Jesus Devastates an Old Earth, disponível em https://answersingenesis.org/theory-of-evolution/millions-of-years/jesus-devastates-an-old-earth/; acesso 28/05/2019
[5] Ibid.
[6] Ibid.
[7] Para mais exemplos, veja ANDERSON, Joel Edmund. The Heresy of Ham: What every evangelical needs to know about the creation-evolution controversy, Birmingham-Hoover, Alabama: Archdeacon Books, 2016.
[8] O texto de João 14 está falando de uma questão de tarefas, não de essência. No de Lucas, Jesus está questionando se aquele que lhe chamou de “bom” tinha noção do que estava falando. Em Apocalipse, o termo “princípio”, no grego, pode ser entendido como originador.
[9] Citado em Answers in Genesis, Jesus Devastates an Old Earth, disponível em https://answersingenesis.org/theory-of-evolution/millions-of-years/jesus-devastates-an-old-earth/; acesso 28/05/2019. (Sublinhado meu)

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