Um dos argumentos mais populares a favor
do Criacionismo de Terra Jovem, é o de que, se contarmos as genealogias de
Gênesis 5 e 11, chegamos ao tempo de 2.000 anos. Somado ao fato de que a
genealogia de Gên 11 termina com Abraão, e ele viveu em 2.000 a.C., os CTJ
chegam à conclusão de que o mundo, agora, tem 6.000 anos.
Se você conhece meu blog e tem lido os últimos
posts, já entendeu que esse é mais um exemplo de interpretação errada por causa
de nosso ponto de vista ocidental do século XXI. De fato, esse é um dos problemas que temos em nossas interpretações bíblicas hoje em dia: tratar todos
os textos como se estivessem falando a nós,
e não a eles. Até mesmo um livro
básico de hermenêutica nos alerta sobre isso. Gordon Fee e Douglas Stuart, por
exemplo, nos dizem:
A
razão por que não devemos começar com
o aqui e atualmente é que o único controle apropriado para a hermenêutica se
acha na intenção original do texto
bíblico. [...] Queremos saber o que a Bíblia significa para nós – e isso é certo. No entanto, não podemos fazê-la
significar o que nos agrada, e depois dar os “créditos” ao Espírito Santo. O
Espírito Santo não pode contradizer a si mesmo; afinal, foi ele que inspirou a
intenção original [...] um texto não pode
significar o que nunca significou.[1]
Assim, a interpretação “simples” do
texto pode estar completamente errada, pois, nós, como intérpretes do século XXI,
achamos o texto tão “simples” que não nos damos o trabalho de investigar. Mas
há de ser reconhecido que existe uma lacuna cultural enorme entre nós e os
autores originais da Bíblia. Como o Rev. Augustus Nicodemus diz:
O mundo em que os escritores da Bíblia viveram já não
existe. Está no passado distante, com suas características, cosmovisões,
costumes, tradições e crenças. Embora a inspiração das Escrituras garanta que
sua mensagem seja relevante para todas as épocas, devemos lembrar que esta
comunicação foi registrada em determinada cultura, da qual preservou traços.
Os interpretes da Bíblia devem levar em conta o jeito de escrever daquela
época, a maneira de expressar conceitos e ilustrar as verdades, para poder
transpor a distância cultural.[2]
Portanto, a primeira pergunta que devemos
fazer ao interpretar uma genealogia é: como “funcionavam” as genealogias no
Antigo Oriente Médio? Não precisamos sair do próprio texto bíblico, pois ele já
nos revela.
Considere, assim, a genealogia presente
em Êxodo 6.16-20, que mostra as gerações posteriores de Levi. Nesse texto,
quando chegamos a Moisés, só nos é dito quatro nomes: Levi, Coate, Anrão e
Moisés. Porém, em 1 Crônicas 7.20-27, nós encontramos uma genealogia paralela à
esta, que começa com o irmão de Levi, Efraim, e termina no mesmo período de
Moisés, com Josué. O ponto chave é que, se compararmos essas genealogias, vemos
uma grande lacuna entre Anrão e Moisés, pois, enquanto a genealogia de Êxodo
conta com apenas quatro nomes, a de 1 Crônicas possui onze:
Êxodo
6:16-20
|
1
Crônicas 7:20-27
|
Levi
|
José
|
Coate
|
Efraim
|
Anrão
|
Berias
|
Refa
|
|
Resefe
|
|
Telá
|
|
Taã
|
|
Ladã
|
|
Amiúde
|
|
Elisama
|
|
Num
|
|
Arão e Moisés
|
Josué
|
Isso era extremamente comum nos tempos
bíblicos. Podemos ver diversas genealogias resumidas em todo o Antigo
Testamento. Considere, como exemplo também, a genealogia de 1 Crônicas 6.3-15 e
a de Esdras 7.1-5:
1
Crônicas 6:3-15
|
Esdras
7:1-5
|
Arão
|
Arão
|
Eleazar
|
Eleazar
|
Finéias
|
Finéias
|
Abisua
|
Abisua
|
Buqui
|
Buqui
|
Uzi
|
Uzi
|
Zeraías
|
Zeraquias
|
Meraiote
|
Meraiote
|
Amarias
|
|
Aitube
|
|
Zadoque
|
|
Aimaás
|
|
Azarias
|
|
Joanã
|
|
Azarias (2)
|
Azarias (2)
|
Amarias
|
Amarias
|
Aitube
|
Aitube
|
Zadoque
|
Zadoque
|
Salum
|
Salum
|
Hilquias
|
Hilquias
|
Azarias (3)
|
Azarias (3)
|
Seraías
|
Seraías
|
Agora, é importante notar também a
presença de palavras hebraicas que, apesar de serem traduzidas as vezes por “pai” e “filho”, podem significar “ancestral”
e “descendente”. Esse é o caso das palavras av
e ben, que muitas vezes possuem esse
significado. Assim, devemos concluir que os autores bíblicos não têm a intenção
de falar de uma geração direta de pai para filho, pois as genealogias muitas
vezes possuem lacunas, sendo o importante mencionar nomes grandes para o autor.
Mas o que podemos dizer das genealogias
de Gênesis? Elas não possuem uma formula diferente? Afinal, podemos ver claramente
a presença da idade das pessoas quando geraram seus filhos. Enquanto nas outras
genealogias nós temos “X gerou Y”, em Gênesis nós temos “quando X tinha Z anos,
gerou Y”. Ora, a leitura “simples” não nos diz que podemos contar e chegar ao
total de anos do mundo, ou pelo menos da humanidade?
A resposta clara é que não. A genealogia
mais parecida com as de Gênesis encontra-se no texto já mencionado de Êxodo 6: “E
Anrão tomou por mulher a Joquebede, sua tia, e ela deu-lhe [yalad] Arão e Moisés: e os anos da vida
de Anrão foram cento e trinta e sete anos” (Êx 6.20)
A presença da palavra hebraica yalad é importante, pois essa é
exatamente a mesma palavra que é usada nas genealogias de Gênesis. Como vimos,
de Anrão até Arão e Moisés existe uma grande lacuna, que fica evidente quando
esta genealogia é comparada com a de 1 Crônicas 7. Ora, se existe uma lacuna,
então o texto de Êxodo deve ser interpretado como: “Anrão tomou por mulher
Joquebede, e ela gerou um ancestral
de Arão e Moisés”. Isso não é uma adição ao texto, mas sim o que a lógica da
genealogia nos leva a concluir.
Assim, as genealogias de Gênesis podem
muito bem ser interpretadas do seguinte modo, seguindo para o restante do
texto:
E viveu
Maalaleel sessenta e cinco anos, e gerou um
ancestral de Jerede.
E viveu
Maalaleel, depois que gerou um ancestral
de Jerede, oitocentos e trinta anos, e gerou filhos e filhas.
E foram
todos os dias de Maalaleel oitocentos e noventa e cinco anos, e morreu.
Gênesis
5:15-17
Assim, o ônus da prova cai sobre o
Criacionista de Terra Jovem, em tentar provar que essas genealogias são diretas
de pai para filho. K. A. Kitchen, um estudioso do Antigo Testamento, diz que: “as
genealogias do Antigo Oriente Médio normalmente eram seletivas, não contínuas
[...] A continuidade das genealogias [na Bíblia] deve ser provada, não
pressuposta.”[3]
Se esse é o caso, portanto, torna-se impossível calcular a idade do mundo
usando as genealogias de Gênesis. Afinal, essa não é nem ao menos o propósito
do autor. Como sabemos? Ora, geralmente quando o autor bíblico quer que os
números da narrativa digam um total, ele mesmo as soma. Por exemplo, em Números
1:46 há o número total de cada tribo de Israel. Em Gênesis 46:27, há o número
total de filhos e netos de Jacó, que é 70. A ausência de um número total no
final dessas genealogias em Gênesis 5 e 11 indica que os números não foram
colocados ali para serem somados de forma direta.[4]
Isso fica claro também quando vemos o
final da genealogia em Gênesis 11. Em Gênesis 11:26, lemos que Terá gerou
Abraão com 70 anos. Logo depois, em Gênesis 11:32, nos é dito que Terá morreu
com 205 anos. Porém, depois da morte de Terá, Abraão saiu de Harã (Atos 7:4), e
o texto nos diz que ele tinha 75 anos (Gênesis 12:4). Se Terá morreu com 205
anos e depois disso Abraão tinha 75 anos, então Abraão nasceu quando Terá tinha
no mínimo 130 anos. Isso indica que o ano em que os filhos foram gerados não
precisa, necessariamente, ser exatamente o ano em que todos os filhos foram
gerados, o que dificulta para quem utiliza esses dados para calcular a idade da
criação. Podemos aplicar esse mesmo princípio a outros nomes nas genealogias.
Por exemplo, quando diz que Jarede gerou Enoque com 172 anos, pode ser
interpretado como se essa idade Jarece começou a ter filhos, e Enoque, podendo
ter sido gerado anos depois, é listado por ser o mais importante dos seus
filhos.[5]
Mas como nós podemos saber que realmente
há lacunas nas genealogias de Gênesis? Há outra que pode ser comparada que
indique isso? Sim! Compare as genealogias de Gênesis com a presente em Lucas 3:
Gênesis
5 e 11
|
Lucas
3
|
Adão
|
Adão
|
Sete
|
Sete
|
Enos
|
Enos
|
Cainã
|
Cainã
|
Maalaleel
|
Maalaleel
|
Jerede
|
Jarede
|
Enoque
|
Enoque
|
Matusalém
|
Matusalém
|
Lameque
|
Lameque
|
Noé
|
Noé
|
Sem
|
Sem
|
Arfaxade
|
Arfaxade
|
Cainã (2)
|
|
Selá
|
Selá
|
Éber
|
Eber
|
Pelegue
|
Pelegue (Fáleque)
|
Reú
|
Reú (Ragaú)
|
Serugue
|
Seruque
|
Naor
|
Naor (Nacor)
|
Terá
|
Terá
|
Abraão
|
Abraão
|
Perceba que em Gênesis há um nome a
menos. Em Lucas, temos a presença de um segundo Cainã, filho de Arfaxade, pai de
Selá (Lc 3.36). Mas, em Gênesis, lemos que Arfaxade gerou [yalad] Selá (Gn 11.12).
Alguns Criacionistas de Terra Jovem argumentam
que esse Cainã pode ter sido o erro de um copista, já que existem duas cópias de
Lucas nas quais ele não aparece. Contudo, ele ainda está na maioria das cópias
de Lucas, e também é provável que os escritores das cópias onde ele está
ausente queriam conformar o texto ao de Gênesis.[6]
Também é argumentado que os copistas
estavam familiarizados com a Septuaginta e, como as cópias mais tardias da
Septuaginta apresentam esse segundo Cainã, então os copistas de Lucas, por
estarem familiarizados com a Septuaginta, acrescentaram ele à sua genealogia.
Entretanto, é ainda mais provável que os copistas da Septuaginta tenham
acrescentado o segundo Cainã para conformar o texto ao de Lucas. John Millam dá
algumas razões do porque essa alternativa é mais provável:
Essa conclusão é baseada na observação de que as mudanças
na Septuaginta parecem ser muito grandes para terem sido acidentais. Primeiro,
quando o segundo Cainã aparece nesses manuscritos tardios, ele aparece em três
locais – Gênesis 11:12 e em duas genealogias relacionadas, Gênesis 10:24 e 1
Crônicas 1:24. Segundo, a inserção em Gênesis 11:12 envolve mais do que apenas
um nome (como no caso de Lucas 3), e sim duas sentenças completas. As idades em
que ele se tornou pai e a idade em que morreu foram adicionadas de modo que
segue o padrão dos outros. Terceiro, durante o período da igreja primitiva, a
Septuaginta foi amplamente mantida por cristãos que se sentiriam tentados em
mudar a genealogia de Lucas. Dados todos esses fatores, nós podemos
racionalmente eliminar a ideia de que o Cainã extra em Lucas veio da Septuaginta.[7]
É bem possível que o segundo Cainã seja
legitimo. Como vimos, nas genealogias bíblicas, quando uma genealogia está
resumida ela segue um padrão de 10 nomes ou algum múltiplo de 7. Em Lucas,
encontramos 21 nomes de Adão até Abraão, 14 nomes de Abraão até Davi, 21 nomes
de Davi até o exílio, e 21 nomes do exílio até Jesus. Considerando que há 21
nomes entre Adão e Abraão em Lucas, e apenas 20 nomes em Gênesis, é possível
que esse o segundo Cainã seja legitimo e foi contado para formar um múltiplo de
7. Dado o nosso conhecimento de genealogias bíblicas, é provável que ainda mais nomes tenham sido omitidos em Gênesis.
Concluímos, portanto, que o uso das
genealogias de Gênesis por parte dos Criacionistas de Terra Jovem para provar
uma idade do mundo é apenas mais uma parte do anacronismo e exegese ruim por
parte deles. Sem considerar o contexto histórico e o texto original, os
Criacionistas de Terra Jovem não são capazes de perceber a riqueza “escondida”
na cultura dos hebreus. Infelizmente, essa tendência de ir para a “leitura
simples” do texto não afeta apenas sua exegese das genealogias. Afeta sua
exegese da Bíblia em geral e, pior, afeta toda a sua cosmovisão cristã, de modo
que eles representam a Bíblia de maneira errada ao mundo. É justamente por
isso, portanto, que um apologeta cristão deve combater o Criacionismo de Terra
Jovem.[8]
[1] FEE, Gordon D; STUART, Douglas. Entendes o que lês?: um guia para entender a Bíblia com auxílio da
exegese e da hermenêutica, 3ª Ed., São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 38, 39
[2] LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes: uma breve história da interpretação, 3ª
Ed., São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 24
[3] Apud. Hugh Henry, Daniel Dyke, God
of the gaps: Gaps in Biblical Genealogies Make it Impossible to Calculate
the Date of Creation, 2ª Ed., Mars Hill Center, 2016, Locais do Kindle 751-753,
Edição do Kindle
[4] John Millam, The Genesis Genealogies, 2010, p. 11
[5] Essa parte do texto foi retirada de FORTI, Felipe. A gênese em gênesis: solucionando a
controvérsia das eras, 2ª Ed., São Paulo: Ed. do Autor, 2019, p. 137.
[6] John Millam, The
Genesis Genealogies, 2010, p. 14
[7] Ibid. p. 15
[8]
Mais razões para se entender que as genealogias de Gênesis possuem lacunas (assim
como a refutação de mais objeções) foram apresentadas no livro FORTI, Felipe. A
gênese em gênesis: solucionando a controvérsia das eras, 2ª Ed., São Paulo:
Ed. do Autor, 2019, pp. 121-149.
Parabéns pelo texto!
ResponderExcluirMuito bom amigo, rico em informações.
ResponderExcluirSe você somar todas essas questões sobre as genealogias do Gênesis mais a teoria do intervalo. Onde também houve uma lacuna entre os versículos 2 e 3 de Gênesis 1, resolve quase todo o problema da cronologia bíblica com as descobertas cientificas atuais.
Nao sei se vc conhece a teoria do intervalo, mas essa teoria diz que os dois primeiros versículos de Gênesis não fazem parte da semana da criação, mas aconteceram antes dela, e como esses versículos não especificam o seu tempo de origem nem sua duração, podemos supor qualquer tempo sobre eles.
Assim, os bilhões de anos da terra e do universo teriam acontecido dentro desses dois primeiros versículos, então teria acontecido a semana da criação e SEIS DIAS LITERAIS, que ocorreu apenas no planeta terra, quando o nosso mundo tornou-se habitável e a vida foi criada.
Note que existem duas teorias do intervalo: a do intervalo ativo, que trata da ideia herege de que a terra "era sem forma e vazia" pela queda de Satanás, e a teoria do intervalo passivo, que diz que a terra era "sem forma e vazia" porque simplesmente ainda nao estava pronta...