sexta-feira, 7 de junho de 2019

Os Dias de Gênesis (Final)



As evidências a favor da não-literalidade dos dias em Gênesis 1 foram apresentadas. Ainda assim, porém, precisamos lidar com certas objeções. Existem três objeções que normalmente são apresentadas: primeiro, apelam para Êxodo 20 para dizer que os dias tem que ser seis dias literais; segundo, se aponta a formula “tarde e manhã” para indicar que o texto está falando de dias literais; e terceiro, se diz que sempre que a palavra yom está sendo usada com um número ordinal ou cardinal, ele se refere a um dia literal. Vejamos primeiro o texto de Êxodo 20:

Lembra-te do dia do sábado, para o santificar.
Seis dias trabalharás, e farás toda a tua obra.
Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus; não farás nenhuma obra, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o teu estrangeiro, que está dentro das tuas portas.
Porque em seis dias fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo que neles há, e ao sétimo dia descansou; portanto abençoou o Senhor o dia do sábado, e o santificou.
Êxodo 20:8-11

Esse argumento não é tão forte quanto as pessoas que o usam acham. Em primeiro lugar, a palavra yom tem uma gama de sentidos literais, podendo ser traduzida por “dia”, período da luz do dia e longos tempos. Isso explica porque o autor escolheu a palavra yom e não outra, pois Gênesis 1 apresenta dias literais e não-literais, assim englobando ambos os sentidos e mantendo a estrutura poética do texto. Mas, em segundo lugar, a própria palavra shabbath, traduzida por “sábado”, não se restringe a um período de 24 horas. Em Levítico 25.3-4, a palavra shabbath é usada para se referir a um ano de descanso da terra.
Com a palavra yom e a palavra shabbath permitindo múltiplas durações, podemos apontar que o texto de Êxodo não diz absolutamente nada quanto à duração desses dias, mas fala apenas do padrão de seis em um. Como William Lane Craig bem colocou:

Os criacionistas literais vão dizer que isso [Êxodo 20] mostra que Gênesis 1 está, de fato, intencionado a se referir a uma semana literal de seis dias consecutivos de 24 horas. Mas eu acredito que isso seja pressionar a passagem demais. O que a passagem de Êxodo está nos mostrando é o padrão que é colocado em Gênesis 1 – o padrão de Deus trabalhando em seis dias criativos e então descansando no sétimo dia. Esse padrão é o mesmo que Israel deveria observar em sua semana de trabalho literal. Mas isso não quer dizer que, já que o padrão é o mesmo, então os períodos de duração descritos em Gênesis também têm, portanto, a exata mesma duração que nossos dias normais do calendário.[1]

Com referência ao quarto mandamento, Gleason Archer também diz:

De maneira nenhuma isso [Êxodo 20:8-11] demonstra que intervalos de 24 horas estavam envolvidos nos primeiros seis dias, assim como a celebração de oito dias da Festa dos Tabernáculos não prova que as peregrinações no deserto sob Moisés ocuparam apenas oito dias.[2]

Portanto, vemos que o texto de Êxodo 20.8-11 não serve como uma evidência forte a favor do Criacionismo de Terra Jovem. É um texto que apenas aponta o padrão de trabalho e descanso de Israel.
A formula “tarde e manhã” também não implica em uma interpretação literal dos dias. No Salmo 90, escrito por Moisés, utiliza as palavras “tarde” e “manhã” como metáforas para o fim e início de um longo período. Ao mesmo tempo, a palavra yom é apresentada no texto como uma referência a um “dia” de Deus, que equivale a “mil anos”:

SENHOR, tu tens sido o nosso refúgio, de geração em geração.
Antes que os montes nascessem, ou que tu formasses a terra e o mundo, mesmo de eternidade a eternidade, tu és Deus.
Tu reduzes o homem à destruição; e dizes: Tornai-vos, filhos dos homens.
Porque mil anos são aos teus olhos como o dia de ontem que passou, e como a vigília da noite.
Tu os levas como uma corrente de água; são como um sono; de manhã são como a erva que cresce.
De madrugada floresce e cresce; à tarde corta-se e seca.
Salmos 90:1-6

O texto fala de como Deus transcende tempo e nós somos limitados por ele. Mas mostra que, linguisticamente, não existe restrição a dizer que “tarde” e “manhã” indicam o fim e o início de um longo período.
Há mais uma coisa que deve ser dita com relação a esse argumento: o sétimo dia não possui “tarde e manhã”. Junto ao fato de que o Salmo 95 diz que o descanso de Deus não acabou (95.11), podemos concluir que o sétimo dia não acabou na semana de criação. Ademais, em Hebreus 3-4 nós temos esse texto citado, onde o autor diz que Deus instituiu um novo dia, chamado Hoje (4.7), o qual é um período de tempo indeterminado (3.13). Assim, concluímos que: ou o sétimo dia continua até hoje, ou esse “hoje” é um novo dia, no qual estamos, que teve início com a obra de Cristo. Independentemente disso, temos uma evidência de que os dias de Gênesis não são literais a partir do Novo Testamento.
A última objeção é, de fato, a mais fraca. A alegação de que a palavra yom com um número sempre indica um período de 24 horas é falsa, pois não existe nenhuma regra gramatical no hebraico que exija isso. De fato, existem textos que usam yom com um numeral e não significa um período de 24 horas (ex.: Oséias 6.2; Zacarias 14.7). Essa “regra” foi simplesmente inventada por Criacionistas de Terra Jovem apenas para dar suporte à sua interpretação falha.[3]
Concluímos essa série de três posts sobre os dias de Gênesis com uma recapitulação. O primeiro dia provavelmente é literal; o segundo dia não da pra saber; o terceiro com toda certeza não é; o quarto dia talvez não seja; o quinto dia não há como saber; e o sexto com toda certeza também não é. Confuso? Nem tanto. Deus não quis revelar a duração de todos os dias de criação, mas nos mostrou que foi ele que criou, deu ordem e função a todas as coisas. Vimos, por fim, que os argumentos a favor da literalidade dos dias são, de fato, fracos, e exigem que adicionemos muitas coisas que não estão no texto bíblico (ex.: Deus acelerando o processo no terceiro dia; Adão com superpoderes, etc.). Assim, estamos justificados em dizer que os dias de Gênesis não são todos literais, e que a crença em uma terra antiga não está impedida pela narrativa de criação. O cristão pode se sentir confortável em crer que Deus criou um mundo antigo, com milhões ou bilhões de anos, pois a Palavra não especifica nenhuma idade para o mundo.


[1] Reasonable Faith, Excursus on Creation of Life and Biological Diversity (Part 3): A Critique of the Literal Interpretation, 2019, disponível em https://www.reasonablefaith.org/podcasts/defenders-podcast-series-3/excursus-on-creation-of-life-and-biological-diversity/excursus-on-creation-of-life-and-biological-diversity-part-3/; acesso 06/06/2019
[2] Apud. Hugh Ross, A Matter of Days: resolving a Creation Controversy, 2ª Ed., Colorado Springs, CO: NavPress, 2015, p. 97. Edição ePub
[3] Norman Geisler, Enciclopédia de apologética: Repostas aos críticos da fé cristã, Vida, 2002, p. 371

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Os Dias de Gênesis (Parte 2)



Baseado no que vimos até aqui, percebemos que a questão não é “qual é a tradução correta da palavra yom?” A questão que enfrentamos é se a palavra “dia” é literal ou não. Certamente a tradução correta é “dia”, e o uso da formula “tarde e manhã” parece indicar isso. Porém, até mesmo essa formula não restringe os dias períodos de 24 horas.[1] Agora devemos avaliar o que nos é dito no quarto dia:

E disse Deus: Haja luminares na expansão dos céus, para haver separação entre o dia e a noite; e sejam eles para sinais e para tempos determinados e para dias e anos.
E sejam para luminares na expansão dos céus, para iluminar a terra; e assim foi.
E fez Deus os dois grandes luminares: o luminar maior para governar o dia, e o luminar menor para governar a noite; e fez as estrelas.
E Deus os pôs na expansão dos céus para iluminar a terra,
E para governar o dia e a noite, e para fazer separação entre a luz e as trevas; e viu Deus que era bom.
E foi a tarde e a manhã, o dia quarto.
Gênesis 1:14-19

Aqui temos um dos grandes desafios ao se interpretar Gênesis 1, e isso se deve a uma série de fatores. Em primeiro lugar, se formos ler como um relato estritamente literal, então temos que dizer que a lua é um luminar, ou seja, ela emite luz. Em segundo lugar, se interpretarmos também que o sol, a lua e as estrelas foram criadas nesse dia, com a própria função de marcar os dias, como pode ter havido três dias antes deste? E em terceiro lugar, a função do sol e da lua é a de separar a luz e as trevas, mas no primeiro dia nos é dito que o próprio Deus fez essa separação. Como, então, solucionar esses problemas?
O primeiro problema é facilmente resolvido ao entender duas coisas: primeiro, como dito antes, nem tudo nesses três primeiros capítulos deve ser lido de modo literal; segundo, temos que entendermos que, no Antigo Oriente Médio, “luz” não era algo físico[2].
O segundo problema só é um problema de verdade se descartarmos a ideia de que há uma proposta funcional nesse texto. Deus claramente está dando a função ao sol e à lua de marcar dias, estações e anos. Assim, devemos entender que o texto está nos dizendo apenas isso: o sol, a lua e as estrelas já existiam, mas agora eles possuam função de marcar os dias, as estações (relacionadas às festividades judaicas) e anos.
Há dois indicativos de que isso está acontecendo no texto, além do que está óbvio para nós: primeiro, o texto começa com “haja”, uma palavra que aparece nos dias um e dois para indicar que algo irá aparecer e logo depois lhe será dada uma função (1.3, 6). Segundo, a palavra hebraica traduzida por “fez” em 1.16 pode facilmente ser traduzida por “preparou” e ainda ser uma tradução literal[3]. A tradução para “preparou” está mais de acordo com o contexto e com o que o autor quer transmitir nele: Deus está preparando o mundo para que ele seja produtivo.
Talvez exista um fator nesse texto que indique a sua não-literalidade. Mas para mostrar isso, devemos ir ao dia 1: “E disse Deus: Haja luz; e houve luz”. A importância desse texto está nas palavras hebraicas utilizadas e na ordem em que elas são utilizadas. Em hebraico, nós lemos יְהִ֣י א֑וֹר וַֽיְהִי־ אֽוֹר (yehî ‘or wayhî ‘or). É importante perceber que Deus ordena que apareça o período de 12 horas da luz do dia e depois dessas 12 horas ele diz que houve luz (wayhî ‘or). Essa palavra hebraica wayhî indica uma mudança de referencial de tempo. Note que essa palavra começa com a conjunção vav, que indica uma continuidade na história. Porém, a palavra wayhî parece indicar uma sequência com um novo referencial de tempo (isso ocorre, por exemplo, em Jó 1.6; 13; 2.1; 1 Samuel 14.1; Gênesis 26.1; Rute 1.1).[4] Assim, se nós tempos um novo referencial de tempo, e se quando ela é usada após um comando ela indica que o comando foi finalizado, o que podemos dizer do seguinte texto do quarto dia:

E disse Deus: Haja luminares na expansão dos céus, para haver separação entre o dia e a noite; e sejam eles para sinais e para tempos determinados e para dias e anos.
E sejam para luminares na expansão dos céus, para iluminar a terra; e assim foi [wayhî ken].
Gênesis 1:14,15

O uso da palavra wayhî após Deus dar a função do sol e da lua marcarem os dias, tempos determinados e anos parece indicar que antes do quarto dia acabar, tudo isso foi realizado. Portanto, há um bom argumento aqui para a não-literalidade do quarto dia, fazendo dele um período muito mais longo do que o de 24 horas.
Por fim, o terceiro problema parece ser o mais difícil, se nós nos propusermos a ficar apenas com as ideias que o texto mostra. A sugestão de que Deus fazia a função de separar dia e noite até aqui parece ser forçar algo que o texto não diz. Ao mesmo tempo, dizer que o próprio Deus era a luz, pois em João ele é chamado de luz do mundo parece não entender o sentido de “luz” em João. Ainda mais, outros propõem que Deus era a luz, pois em Apocalipse diz que ele será a nossa fonte de luz. Entretanto, Gênesis não faz essa ligação, e não parece correto fazer essa ligação entre “novos céus e nova terra” e os nossos “céus e terra”.[5]
Já que esse problema não diz respeito diretamente à literalidade dos dias de Gênesis, podemos ir ao quinto dia, onde aparecem os animais marinhos:

E disse Deus: Produzam as águas abundantemente répteis de alma vivente; e voem as aves sobre a face da expansão dos céus.
E Deus criou as grandes baleias, e todo o réptil de alma vivente que as águas abundantemente produziram conforme as suas espécies; e toda a ave de asas conforme a sua espécie; e viu Deus que era bom.
E Deus os abençoou, dizendo: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei as águas nos mares; e as aves se multipliquem na terra.
E foi a tarde e a manhã, o dia quinto.
Gênesis 1:20-23

O relato do quinto dia pode ser entendido como um período de 24 horas ou não. Nada no texto parece fazer preferência a uma interpretação ou outra. Entretanto, há algumas coisas importantes a serem percebidas aqui: primeiro, o texto começa com Deus dando uma função às águas de produzir os répteis de alma vivente. No versículo seguinte, porém, o texto diz que Deus os criou. Há, aqui, portanto, uma contradição? Não, não há, mas nossas mentes ocidentais do século XXI tentam a impor conceitos no texto que não estão lá. A palavra hebraica bara, que é traduzida por “criar” não significa “criar a partir do nada” e também não significa, necessariamente, criação material.[6] Assim, podemos entender que o quinto dia também possui uma orientação de criação funcional.
O sexto dia é um dos mais importantes para a nossa análise:

E disse Deus: Produza a terra alma vivente conforme a sua espécie; gado, e répteis e feras da terra conforme a sua espécie; e assim foi.
E fez Deus as feras da terra conforme a sua espécie, e o gado conforme a sua espécie, e todo o réptil da terra conforme a sua espécie; e viu Deus que era bom.
E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.
E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.
E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.
E disse Deus: Eis que vos tenho dado toda a erva que dê semente, que está sobre a face de toda a terra; e toda a árvore, em que há fruto que dê semente, ser-vos-á para mantimento.
E a todo o animal da terra, e a toda a ave dos céus, e a todo o réptil da terra, em que há alma vivente, toda a erva verde será para mantimento; e assim foi.
E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom; e foi a tarde e a manhã, o dia sexto.
Gênesis 1:24-31

O texto de Gênesis 2.4-25 temos uma recapitulação do que ocorreu no sexto dia de Gênesis 1. Esse texto é um grande problema para os que interpretam os dias como literais. Até mesmo John Walton, que interpreta os dias como literais, diz: “Dizer que os eventos em Gênesis 2 poderiam todos ocorrer em um dia de 24 horas (entre eles, nomear todos os animais, o que aparentemente foi concluído porque nenhum ajudador foi encontrado) é forçar credulidade”.[7]
Gênesis 2 começa com um texto circunstancial de uma região específica, onde Deus plantou o jardim do Éden. Após isso, Deus formou o homem pó da terra, e o levou para o jardim. Depois de colocar o homem no jardim, Deus levou a ele todo o animal do campo, ave e gado (2.19-20). Não tendo encontrado uma ajudadora, Deus lhe fez uma a partir de um de seus lados (2.21).
Todos esses eventos não poderiam ter ocorrido em 24 horas. Em primeiro lugar, o texto diz que Deus plantou o jardim, algo que levaria muito mais do que 24 horas. Não há indícios, também, de que Deus tenha acelerado o processo. Em segundo lugar, Adão teve de nomear milhares de animais, sendo assim impossível uma tarefa impossível para ser concluída em 24 horas. Não há indícios no texto de que Adão tivesse superpoderes ou superinteligência, e muito menos de que havia menos animais naquela época. Alguns tentam responder que Adão nomeou as famílias de animais, e não os animais de cada família. Entretanto, isso contradiz o próprio mandato cultural de Adão ter de dominar os animais, já que o ato de nomear, no Antigo Oriente Médio, indicava seu controle ou poder sobre o que foi nomeado[8].
O sexto dia, portanto, não pode, de modo nenhum, ser um dia literal de 24 horas. Assim, toda a narrativa dos Criacionistas de Terra Jovem torna-se invalidada pela própria evidência interna do texto bíblico. Gleason Archer conclui: “Com base na evidência interna, é convicção do presente escritor que yôm em Gênesis 1 não foi empregado pelo autor hebreu com a intenção de descrever um dia literal de 24 horas”.[9]

Continua...



[1] No salmo de Moisés (Salmo 90) as palavras “tarde” e “manhã” são usadas junto da palavra “dia” para mostrar que um dia de Deus é equivalente a um longo período.
[2] WALTON, John. The lost world of Adam and Eve: genesis 2-3 and the human origins debate, Downers Grove: InterVarsity Press, 2015, p. 32. Edição ePub
[3] Ibid. p. 26
[4] WHITEFIELD, Rodney. The word “vayhiy” in genesis chapter one support for an old Earth, 2013, pp. 2-10, disponível em http://www.creationingenesis.com/Vayhiy_in_Genesis_Chapter_One.pdf; acesso 03/06/2019
[5] Essas duas últimas propostas podem ser lidas em: GotQuestions. How could there be light on the first day of Creation if the sun was not created until the fourth day?, disponível em https://www.gotquestions.org/light-first-sun-fourth.html; acesso 05/06/2019
[6] WALTON, John. The lost world of genesis one: ancient cosmology and the origins debate, Downers Grove: InterVarsity Press, 2009, pp. 36-43
[7] WALTON, John. The lost world of Adam and Eve: genesis 2-3 and the human origins debate, Downers Grove: InterVarsity Press, 2015, p. 55. Edição ePub; Walton argumenta que Gênesis 2 é uma sequência de Gênesis 1, não uma recapitulação. Esse tema será retomado em outro texto.
[8] Peet Van Dyk, Challenges in the Search for an Ecotheology. Old Testament Essays, 2009. 22. p. 191, disponível em http://www.scielo.org.za/pdf/ote/v22n1/10.pdf; acesso 04/06/2019
[9] Gleason Archer, Panorama do Antigo Testamento, 2ª Ed., São Paulo: Vida Nova, 2012, p. 215

terça-feira, 4 de junho de 2019

Os Dias de Gênesis (Parte 1)



Central para a questão da idade do mundo está no que diz respeito à duração dos dias de Gênesis 1. Ora, o texto de Gênesis 1:1-2 nos mostra duas possibilidades: (1) 1:1 ocorreu em um tempo indeterminado antes da terra estar improdutiva[1]; e (2) 1:1 é um título que resume o que acontecerá em 1:3-31[2]. Independente disso, 1:2 segue dizendo apenas um pano de fundo do que aconteceria em 1:3-31. A terra, que era sem forma e vazia, agora está ficando produtiva e pronta para ser preenchida.
Esse pano de fundo nos traz as palavras tohu e bohu, que são traduzidas por “sem forma” e “vazia”. John Walton fez uma análise do sentido da palavra tohu, e em todas as 32 vezes em que ela é usada nas Escrituras, ela nunca tem o sentido de descrever a forma material de algo (veja:1 Samuel 12:21; Jó 6:18; 12:24; 26:7; Isaías 24:10; 49:4).[3] Walton diz:

Os contextos em que essas palavras ocorrem e as frases usadas em paralelo sugerem que, ao contrário [de uma descrição material], a palavra descreve aquilo que não é funcional, que não tem propósito e geralmente não é produtivo em termos humanos. Aplicando-a como um termo descritivo a substantivos que representam áreas geográficas, nações, cidades, pessoas ou ídolos, todos sugerem a mesma conclusão. Uma palavra que tivesse relação com a forma material não serviria bem nesses contextos.[4]

Assim, uma avaliação dos dias de Gênesis 1 deve começar em 1:3, não em 1:1. Afinal, cada dia começa com “E disse Deus...”, e a primeira vez em que essa frase ocorre é em 1:3. Antes disso, contudo, é preciso tirar três empecilhos que as táticas de medo dos Criacionistas de Terra Jovem colocam na cabeça de seus seguidores:
Primeiro, se formos interpretar os dias de Gênesis como não-literais, isso não significa que vamos alegorizar ou ler como metáfora toda a Bíblia, a crucificação, a ressurreição, etc. Quem diz que isso acontecerá está cometendo a falácia do declive escorregadio, ou seja, não é porque se crê em A que logo se escorregará e crerá em Z. Você pode perceber que isso é apenas uma tática para por medo quando nota que essa acusação não ocorre com, por exemplo, pessoas que tornam o milênio de Apocalipse em metafórico. Ninguém escuta: “Puxa! Você é amilenista! Cuidado, vai metaforizar a ressurreição em breve!”
Segundo, interpretar os dias de Gênesis como metafóricos não é uma novidade criada para acomodar a ciência moderna ao texto bíblico. Nós vemos um padrão interessante de interpretação de “dias” como 1.000 anos nos escritos judaicos apócrifos e comentários. Em 1 Enoque 93, temos uma sessão chamada de “Apocalipse das Semanas”. Essa sessão descreve o plano de Deus desde a criação até a nova criação em dez “semanas”, sendo cada semana um período de tempo irregular. Alguns judeus também tinham uma visão específica sobre o Shabbat como o fim de seis milênios, onde o Shabbat seria um descanso eterno. O Mishnah Tamid diz: “No Shabbat eles vão dizer (Salmo 92), ‘Um Salmo, uma Canção para o dia de sábado.’ (Salmo 93) [A última canção] é um salmo para o futuro, para o dia que será completamente Shabbat por toda a eternidade” (7:4).
Em 2 Enoque 33, a semana da criação é descrita como um período de 7.000 anos, sendo seguido por um “oitavo dia” de tempo indeterminado: “E designei o oitavo dia, como sendo o primeiro dia criado após a minha obra, e os sete primeiros como sendo ciclos de sete mil, e no início dos oito mil, estipulei um tempo incontável, infinito, não medido por anos, meses, semanas, dias ou horas” (2 Enoque 33:1).
No início do segundo século temos a Epistola de Pseudo-Barnabé. Nela, o autor diz que os seis dias de Gênesis são seis mil anos e quando Cristo vier reinará por mil anos, que é o sétimo dia. Depois disso, começará a nova criação com o oitavo dia (Pseudo-Barnabé 15).[5]
Além desses, diversos pais da Igreja, como Agostinho, Origenes, Justino Mártir, Irineu e Clemente já entendiam que esses dias não eram literais.[6] Foi com o advento de Ellen White, quando geólogos amadores começaram a criar o que chamam de “geologia do dilúvio” baseando-se nas “visões” dela, que o Criacionismo de Terra Jovem começou a se espalhar como “interpretação padrão” nas igrejas.
Por fim, precisamos entender que, apesar de Gênesis 1-3 estar contando uma história que de fato ocorreu, diversos elementos da narrativa mostram uma estrutura poética, repleta de metáforas. Por exemplo, há uma clara estrutura de paralelismo no texto, com frases repetidas:
“E disse Deus...”
“Que haja... e houve...”
“E assim foi”
“E viu que era bom”
“E houve tarde e houve manhã”
Nessa narrativa, existem elementos que claramente não são literais. Por exemplo, chamar a lua de “luzeiro menor”, quando a lua não emite luz. Ou, mais pra frente, quando é dito que homem e mulher se tornam uma só carne (não sei se te disseram, mas quando se faz o ato do coito, não se torna um siamês com a pessoa).
Com essas barreiras completamente derrubadas, podemos partir para uma exegese dos textos referentes aos dias da semana de criação. Vejamos, então, o primeiro dia:

E disse Deus: Haja luz; e houve luz.
E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas.
E Deus chamou à luz Dia; e às trevas chamou Noite. E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro.
Gênesis 1:3-5

Ora, no primeiro dia, Deus não criou nada material. “Mas nem a luz?!”, isso, nem a luz. Note que a “luz” que aparece em 1:3 é chamada depois de “dia”. Ou seja, quando Deus diz “que haja luz”, ele está fazendo o período de claro de um dia e lhe dando a função de ser as 12 primeiras horas do dia. As “trevas”, que vão chamadas de “noite” depois, não foram criadas nesse primeiro dia, pois elas já existiam em 1:2.
Quanto ao primeiro dia, portanto, vemos que Deus fez apenas a luz aparecer para ter a função de dia. Não é o caso de a luz não existir antes, mas dela agora ter uma função. A frase “que haja luz” pode ser interpretada simplesmente como “que haja dia”, já que é assim que o próprio Deus chama a luz.
Mas você deve estar se perguntando: “Bom, dia com noite dá 24 horas! Portanto, os dias são literais!”. É verdade que o primeiro dia pode ser um dia literal. Contudo, ele mesmo é finalizado de uma forma diferente dos outros dias. É o único dia que possui um número cardinal com a palavra yom. O hebraico traz echad yom, que deve ser traduzido por “dia um”, não por “primeiro dia” (que seria rishom yom).
No segundo dia, temos a separação das águas:

E disse Deus: Haja uma expansão no meio das águas, e haja separação entre águas e águas.
E fez Deus a expansão, e fez separação entre as águas que estavam debaixo da expansão e as águas que estavam sobre a expansão; e assim foi.
E chamou Deus à expansão Céus, e foi a tarde e a manhã, o dia segundo.
Gênesis 1:6-8

Um fato interessante do segundo dia é que, além de ele também não ter nenhum ato de criação (Deus simplesmente separou águas e chamou o firmamento/expansão de Céus), ele é o único dia que não é chamado de “bom”. Isso se deve à crença do Antigo Oriente Médio de que águas representavam o caos do mundo.
Claramente, os eventos desse dia podem se encaixar em 24 horas. Isso não implica que necessariamente seja o caso, mas é uma possibilidade.
No terceiro dia, contudo, as coisas ficam mais interessantes:

E disse Deus: Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num lugar; e apareça a porção seca; e assim foi.
E chamou Deus à porção seca Terra; e ao ajuntamento das águas chamou Mares; e viu Deus que era bom.
E disse Deus: Produza a terra erva verde, erva que dê semente, árvore frutífera que dê fruto segundo a sua espécie, cuja semente está nela sobre a terra; e assim foi.
E a terra produziu erva, erva dando semente conforme a sua espécie, e a árvore frutífera, cuja semente está nela conforme a sua espécie; e viu Deus que era bom.
E foi a tarde e a manhã, o dia terceiro.
Gênesis 1:9-13

O que nos interessa aqui é a segunda atividade de Deus no dia. Ele, novamente, não criou nada, mas fez a terra aparecer e deu a ela uma função: a de produzir vegetação. Você pode se perguntar: “Ok, mas isso não pode acontecer em um período de 24 horas?” E a resposta é: Não. Perceba que não é Deus que traz a vegetação à existência, ele simplesmente dá essa função à terra, e o texto diz que a própria terra produziu a vegetação, com sementes.
Apesar de John Walton crer que os dias de Gênesis são literais e que apenas há uma criação funcional, sua tese parece dar suporte à tese de que os dias não são literais. Ora, em resposta ao argumento de que a própria terra produziu algo, os Criacionistas de Terra Jovem tentam acomodar o texto à sua interpretação dizendo que Deus acelerou o processo. Não apenas o texto não diz nada sobre esse possível speed up, como também contradiz o próprio proposito do texto. Como John Walton diz: “De uma perspectiva funcional, o solo, a água e o princípio de portar sementes são todos muito relacionados como algo essencial para a produção de comida”.[7]
Assim, como no terceiro dia Deus claramente da a função para a terra e o texto diz que a terra cumpriu sua função, fica nítido que o texto implica que o terceiro dia não é literal. De fato, algo maior aponta para essa conclusão, quando vemos que todos os três primeiros dias são apenas dias de estabelecer funções: “No primeiro dia, Deus criou a base para o tempo; no segundo dia, a base para o clima; e no terceiro dia, a base para a comida. Essas três grandes funções – tempo, clima e comida – são o fundamento da vida”.[8]
Esse é um ponto forte na tese de Walton que fortalece a não-literalidade do terceiro dia. A vegetação aparece e ela mesma cumpre a sua função. William Lane Craig diz:

Todos nós sabemos quanto tempo leva, por exemplo, para uma macieira crescer até se tornar uma árvore madura com frutas, que florescerá e dará maçãs. Se o autor estivesse pensando aqui em um dia de 24 horas, ele teria que imaginar algo que se parecesse com fotografia de lapso de tempo, onde você teria o aparecimento de uma semente, e as pequenas plantas aparecem do solo, e de repente elas crescem em uma árvore, aparecem então as flores, e as frutas brotam da árvore. Eu simplesmente não consigo me convencer de que isso é o que o autor antigo de Gênesis está imaginando.[9]

Uma outra possível objeção, é dizer que está se negando o uniformitarianismo, que é uma teoria científica que diz que a natureza se comportava no passado como se comporta no presente. Assim, negando esse princípio, se afirma que a vegetação podia crescer mais rápido naquele tempo. Essa resposta é apenas uma tentativa ad hoc para salvar uma interpretação falida. E, se nós concedêssemos validade a ela pelo bem do argumento, poderíamos também dizer que os dias naquele tempo eram mais longos.
Concluímos, portanto, que o terceiro dia claramente não é um período de 24 horas, e o próprio texto indica isso. O primeiro dia provavelmente teve 24 horas e era literal, o segundo não há como saber, mas o terceiro certamente não era. Dado o fato de que Deus estava dando função à terra de produzir a vegetação, é pouco provável que ele iria acelerar o processo de produção.

Continua...



[1] Essa é a posição que eu defendo em A gênese em gênesis: solucionando a controvérsia das eras, 2ª Ed., São Paulo: Ed. do Autor, 2019.
[2] Veja: Olhar Unificado, Bereshit v.s. criacionismo de terra jovem, disponível em https://olharunificado.blogspot.com/2019/05/bereshit-vs-criacionismo-de-terra-jovem.html; acesso 29/05/2019
[3] WALTON, John. The lost world of genesis one: ancient cosmology and the origins debate, Downers Grove: InterVarsity Press, 2009, p. 47-48.
[4] Ibid. p. 48
[5] O texto referente a essas citações também se encontra em A gênese em gênesis, p. 43
[6] Veja: Bruce L. Gordon, Scandal of the Evangelical Mind: A Biblical and Scientific Critique of Young- Earth Creationism, disponível em http://researcherslinks.com/current issues/Scandal-of-the-Evangelical-Mind-A-Biblical-and-Scientific-Critique-of-Young-Earth-Creationism/9/5/43; acesso 14/04/2018
[7] WALTON, John. The lost world of genesis one: ancient cosmology and the origins debate, Downers Grove: InterVarsity Press, 2009, p. 58
[8] Ibid.
[9] Reasonable Faith. Excursus on Creation of Life and Biological Diversity (Part 3): A Critique of the Literal Interpretation, disponível em https://www.reasonablefaith.org/podcasts/defenders-podcast-series-3/excursus-on-creation-of-life-and-biological-diversity/excursus-on-creation-of-life-and-biological-diversity-part-3/; acesso 31/05/2019