quinta-feira, 28 de março de 2019

Havia morte antes da Queda.


Uma das discussões mais “ardentes” que existe entre Criacionistas de Terra Jovem e os de Terra Antiga é a discussão acerca da morte de animais antes do pecado original. Talvez surpreenda o leitor ao saber que muito do que é dito pelos proponentes da Terra Jovem a respeito disso é mais baseado em uma tradição exegética extremamente falha, ao invés de um tratamento bíblico sério.
Com respeito a esse ponto, não quero soar desrespeitoso, mas enfatizar o problema que certas tradições de interpretação podem causar, de modo que simplesmente impedem que nós vejamos o sentido dos textos. Um exemplo muito claro disso está em Gênesis 1.3, que diz: “E disse Deus: Haja luz; e houve luz”. Se você já leu ou ouviu falar desse texto, então você certamente acredita que Deus criou a luz nesse momento. Mas se você continuar a leitura e prestar bem atenção, verá que Deus não está criando nada material aqui:

E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas.
E Deus chamou à luz Dia; e às trevas chamou Noite. E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro. (Gn 1.4-5)

Deus chamou a mesma luz que “houve” no v. 3 de “Dia”. Ou seja, se trocarmos “luz” por “Dia” (que é o nome que o próprio Deus deu), veremos que Deus estava criando um período de tempo de 12 horas, não a luz.
Mas o que tudo isso tem a ver com o título do artigo? Simplesmente devemos observar como nossas interpretações tradicionais muitas vezes nos impedem de ver o sentido do texto e aceitar uma interpretação diferente, simplesmente por orgulho dessa tradição.
No que diz respeito às mortes, você ficará surpreso em saber que não existe absolutamente nenhum texto bíblico que diga que animais não morriam antes da queda. Simplesmente não existe. Alias, o próprio ser humano era mortal, tendo sua imortalidade condicionada à Árvore da Vida: “Então disse o Senhor Deus: Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal; ora, para que não estenda a sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente” (Gn 3.22).
Dizer que o homem era imortal é o mesmo que dizer que Deus plantou a Árvore da Vida por futilidade, para ser algo inútil no jardim.[1] Além disso, o próprio fato de Adão ser criado “pó da terra” implica em sua mortalidade, já que “ser pó” é uma expressão que indica a mortalidade (Gn 3.19; Jó 10.9; Ec 3.20; 2 Sm 22.43; Sm 90.3, 103.14-16; Dn 12.2; 1 Cor 15.42-53).[2]
Ao tentar defender sua posição, os CTJ dizem que Deus disse que Adão “certamente morreria” no dia em que comesse do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Contudo, dados os fatos de que (a) Adão não morreu no mesmo dia em que comeu; (b) os argumentos acima ainda são válidos; e (c) ele foi expulso do Jardim do Éden, devemos, portanto, interpretar que antes da queda Adão poderia morrer se não comesse do fruto da Árvore da Vida, mas certamente morreria sem ela. Como ele foi proibido de comer da cura da morte, ele, agora, certamente morreria, tendo no mesmo dia a morte espiritual, sendo separado de Deus. E assim a morte foi espalhada ao mundo, cheio de pessoas que também pecam (Rm 5.12).
Alguns CTJ dizem que a tradução correta de “certamente morrerás” é “morrendo morrereis”. Mas, essa tradução não faz sentido pois em outros contextos exatamente as mesmas palavras são usadas e, se traduzidas por “morrendo morrereis” elas não faze sentido. Exemplos desses textos são:

Agora, pois, restitui a mulher ao seu marido, porque profeta é, e rogará por ti, para que vivas; porém se não lha restituíres, sabe que certamente morrerás [tamuwth muwth], tu e tudo o que é teu. (Gênesis 20:7)

Disse então Saul a Jônatas: Declara-me o que tens feito. E Jônatas lho declarou, e disse: Tão-somente provei um pouco de mel com a ponta da vara que tinha na mão; eis que devo morrer?
Então disse Saul: Assim me faça Deus, e outro tanto, que com certeza morrerás [tamuwth muwth], Jônatas. (1 Samuel 14:43,44)

Porém o rei disse: Aimeleque, morrerás certamente [tamuwth muwth], tu e toda a casa de teu pai. (1 Samuel 22:16)

Em nenhum desses versos é possível traduzir para “morrendo morrereis”. Todo o contexto deles impede a interpretação de que essas pessoas iriam começar o processo de morte.
No hebraico, a repetição de palavras é usada para enfatizar o sentido dessas palavras. Por exemplo, quando é dito que Deus é “Santo, Santo, Santo”, é para dar ênfase na grande santidade de Deus.
Em Êxodo 21:20, lemos que quem ferisse um servo, “certamente seria castigado”. Aqui há a repetição da palavra naqam, lendo yinaqam naqam. Seria estranho traduzir por “castigando castigarás”, ou dizer que a partir do momento que ferissem um servo iria começar o processo do castigo. O propósito da repetição é dar ênfase na certeza do que o verbo diz.
Por fim, as mesmas palavras ditas por Deus são repetidas pela serpente em Gênesis 3.4, com a adição de um “não”. Teríamos que traduzir, se os CTJ estivessem certos, para “morrendo não morrereis”, o que não faz sentido algum.
Portanto, o que Deus disse a Adão é que no dia em que ele comesse do fruto proibido, ele certamente morreria. A única coisa que aconteceu no dia em que Adão comeu do fruto foi sua expulsão do jardim e da presença da Árvore da Vida. Assim, o que lhe garantia a vida eterna era o fruto essa Árvore.
Assim, seria estranho pensar no homem como mortal e os animais como imortais. Mas os CTJ continuam persistindo, usando o texto de Gênesis 1.29: “E disse Deus: Eis que vos tenho dado toda a erva que dê semente, que está sobre a face de toda a terra; e toda a árvore, em que há fruto que dê semente, ser-vos-á para mantimento.”
O problema com esse texto é que, além dele não proibir o consumo de carne animal, ele também é precedido por outro texto:

E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.
E disse Deus: Eis que vos tenho dado toda a erva que dê semente, que está sobre a face de toda a terra; e toda a árvore, em que há fruto que dê semente, ser-vos-á para mantimento. (Gn 1.28-29)

As palavras hebraicas traduzidas por “subjuguem”/”sujeitai” e “dominem” são kabash e radah. Essas palavras são usadas de uma forma violenta no restante do Antigo Testamento. Como Daniel J. Stulac explica, a palavra kabash é usada em Números 32.22, 29; Josué 18.1 e 2 Samuel 8.11 para falar da conquista da terra. Em Jeremias 34.11 e 2 Crônicas 28.10 o termo é usado para a opressão de escravos. Em Ester 7.8 e Neemias 5.5 é usado de modo que implica o estupro. Zacarias 9.15 diz que “eles vão pisotear e destruir [kabash] as pedras das atiradeiras”.[3]
Joshua John Van Ee fez sua dissertação de doutorado nesse tema e no uso dessas palavras em Gênesis. A sua conclusão sobre a palavra kabash é a seguinte:

Como essa noção de ganhar domínio se relaciona com um objeto inanimado como a terra? Gênesis 1:28 é o único lugar onde [kabash] aparece com [erets] como objeto direto; entretanto, há outros quatro usos de [kabash] [...] onde [erets] é o sujeito [Números 32:22, 29; Josué 18:1, 1 Crônicas 22:18]. Essas descrições em que a terra tem que ser subjugada nos ajuda a determinar o que significa subjugar a terra. Todas elas estão em um contexto de guerras israelitas contra outras nações na terra de Canaã. [...] O subjugar da terra não se refere ao exercício das atividades culturais de agricultura e construção, mas sim o que os precede para torna-los possível. Forças opostas devem ser derrotadas antes da terra ser subjugada. De fato, subjugar a terra é derrotar forças opostas. Nesses versos, as referências sobre a terra são uma metonímia para as nações opostas na terra. A terra ser subjugada é equivalente às pessoas da terra serem conquistadas. Portanto, o dever da humanidade em 1:28 é o de estender o seu domínio pela força contra qualquer um no mundo que se oponha a ela. Ainda assim, quem os humanos vão subjugar? Para responder a essa pergunta é importante se lembrar da progressão lógica no comando em 1:28. Os humanos devem subjugar o mesmo grupo que eles dominam, os animais.[4]

O termo usado para dominar, radah, não significa uma dominação pacifica, como a de um administrador. Ao invés disso, como diz Van Ee, é um termo que “comunica uma forma de controle altamente coerciva”, e a “crueldade ou injustiça” (Levítico 26.17; Neemias 9.28; Isaías 14.6).[5] E também há textos onde o termo é usado com outras palavras para deixar mais explícito, como Levítico 25.43, 46, 53, Ezequiel 34:4 e Isaias 14:6. Van Ee diz que, “O foco é em ter poder sobre alguém, não em executar tarefas administrativas ou funções burocráticas”.[6] O autor também diz:

[Radah] normalmente possui conotações de realeza e se refere à dominação de reis ou de um estado sobre nações estrangeiras. É usado em paralelo com outras descrições de batalha para descrever a conquista inicial de uma nação [Levítico 26:17, Números 24:19, Neemias 9:28, Salmos 110:2, Isaías 14:2]. Também se refere ao poder exercido sobre aqueles anteriormente subjugados por guerra ou ameaça de guerra [1 Reis 5:4, Sálmos 72:8, Isaías 14:6, Ezequiel 29:15].[7]

Ele conclui: “Portanto, é importante notar que em todas as ocorrências de [radah], aquele que é dominado está sob alguma forma de coerção para submissão.”[8]
Assim, o fato de Deus ordenar que Adão e Eva kabash a terra e radah os animais implica que eles deveriam subjugar a terra após uma batalha de dominação com os animais por ela. Se há uma luta com animais em um sentido severo, então animais certamente morriam nesse contexto. Essa ordem de Deus está diretamente ligada ao fato de que Adão e Eva deveriam “multiplicar”. Quando maior o número de pessoas, maior a necessidade também de subjugar e dominar as regiões da terra habitadas por animais.
Essa conclusão está de perfeito acordo com o que outros textos das Escrituras nos dizem. Em um contexto de criação, o Salmo 104:21, nos diz que o leão caça sua presa, e Jó 38.39-41, explicita que é Deus que alimenta os leões e os corvos.
Esse argumento também mostra o problema de interpretações tradicionais, que dizem que “subjugar” e “dominar” são termos “happy happy cute cute cuidem do mundo yaay”. Alguns até interpretam que o domínio foi dado ao homem, quando, na verdade, o texto é imperativo.
Contra o argumento acima apresentado, os CTJ vão citar um texto pós-dilúvio para tentar provar seu ponto de que animais não poderiam servir de alimento para Adão, Eva e suas gerações até o dilúvio. O texto é o de Gênesis 9, que diz:

E abençoou Deus a Noé e a seus filhos, e disse-lhes: Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra.
E o temor de vós e o pavor de vós virão sobre todo o animal da terra, e sobre toda a ave dos céus; tudo o que se move sobre a terra, e todos os peixes do mar, nas vossas mãos são entregues.
Tudo quanto se move, que é vivente, será para vosso mantimento; tudo vos tenho dado como a erva verde.
A carne, porém, com sua vida, isto é, com seu sangue, não comereis. (Gênesis 9:1-4)

Se matar os animais era algo pecaminoso, esse texto iria contradizer tudo o que foi dito antes, além de outros textos, como Gênesis 3:21, onde Deus faz túnicas de pele para Adão e Eva, Gênesis 4:4, em que Abel leva o primogênito das suas ovelhas como oferta a Deus.
O foco do texto de Gênesis 9:3 não é o de dizer que os homens podiam, a partir daquele momento, comer carne. Mas sim na proibição dos versículos 4-6 de que não poderiam comer o sangue. Isso fica evidente pela estrutura do texto, que é usado no restante do Antigo Testamento para da introduzir uma proibição. Considere estes exemplos:

Todo o animal que tem unhas fendidas, divididas em duas, que rumina, entre os animais, aquilo comereis.
Porém estes não comereis, dos que somente ruminam, ou que têm a unha fendida: o camelo, e a lebre, e o coelho, porque ruminam mas não têm a unha fendida; imundos vos serão.
[...]
Isto comereis de tudo o que há nas águas; tudo o que tem barbatanas e escamas comereis.
Mas tudo o que não tiver barbatanas nem escamas não o comereis; imundo vos será.
[...]
Toda a ave limpa comereis.
Porém estas são as que não comereis: a águia, e o quebrantosso, e o xofrango. (Deuteronômio 14:6-7, 9-10, 11-12)

Essa estrutura de texto era normalmente usada para enfatizar uma proibição, não uma permissão. Também podemos encontrar essa estrutura presente nas diversas restrições alimentares de Levítico 11. Perceba que os animais “permitidos” na estrutura presente em Deuteronômio estão dentre os “animais da terra”, “aves do céu” e “peixes do mar” citados em Gênesis 9:1-4. Se essa estrutura começa permitindo algo que antes não era permitido, então os textos de Deuteronômio citados contradizem os de Gênesis 9.
O que acontece aqui é, na verdade, que o texto começa falando de algo que eles já podiam comer (como implicado por Gênesis 1:28), mas usa isso de introdução para falar de algo que não poderia servir de alimento. Como diz Van Ee:

[Gênesis 9:3] é uma introdução necessária (ou pelo menos uma formula) para 9:4-6. O direito da humanidade de comer animais é dito de modo mais explicito em 9:3 do que em 1:28 por causa da proibição que estava sendo introduzida [...] Os humanos antes do dilúvio tinham o direito de comer carne, mas restrições foram colocadas nesse direito para diminuir a violência. Em Gênesis 1:28 o direito de comer os animais estava implícito, mas em 9:3 ele precisou ser explicitamente mencionado, já que Deus estava modificando essa maneira da humanidade se relacionar com os animais. [9]

Portanto, ao invés de Gênesis 9:1-6 mostrar que antes não era permitido o consumo de carne, esse texto na verdade demonstra que os humanos pré-dilúvio se alimentavam com carne de animais também.[10]
O texto ficou mais longo do que eu esperava, mas tentei resumir algumas partes do meu livro A Gênese em Gênesis*. Concluímos, portanto, que certamente haviam mortes de animais antes do pecado. O ser humano não foi criado vegetariano, mas sim alguém que poderia comer carne, assim como existiam animais carnívoros.
Em outro texto falaremos mais sobre o que "muito bom" significa, e como sabemos que ele não exclui a existência de mortes antes da queda.





* Esse texto é parte do livro A Gênese em Gênesis: solucionando a controvérsia das eras, 2ª Ed., São Paulo: Ed. do Autor, 2019, p. 149-166
[1] A interpretação de que essa “vida eterna” era qualitativa é uma adição ao texto, sem qualquer razão exegética para ser aceita.
[2]   John Walton, The lost world of Adam and Eve: Genesis 2-3 and the human origins debate, Downers Grove. IL: InterVarsity Press, 2015 ,p. 62. Edição ePub
[3] Daniel J. Stulac, Hierarchy and Violence in Genesis 1:26-28: An Agrarian Solution, 2013, disponível em https://www.academia.edu/5186990/Hierarchy_and_Violence_in_Genesis_1_26-28_An_Agrarian_Solution?a; acesso 06/01/2019
[4] Joshua John Van Ee, Death and the Garden: An Examination of Original Immortality, Vegetarianism, and Animal Peace in the Hebrew Bible and Mesopotamia, 2016, p. 201, 206-207, disponível em https://escholarship.org/uc/item/0qm3n0mt; acesso 06/01/2019
[5] Ibid, p. 207
[6] Ibid. p. 208
[7] Ibid.
[8] Ibid. p. 211
[9] Ibid. p. 245, 249, 206-207
[10] A tradução da NVI coloca que “agora” eles poderão comer animais, assim como comem vegetais. Mas o “agora” não existe no hebraico.

terça-feira, 19 de março de 2019

Os piores argumentos dos Criacionistas de Terra Jovem



No meio dos defensores do Criacionismo de Terra Jovem, existem certos “jargões” que são repetidos várias e várias vezes, mas aparentemente não há nenhuma reflexão crítica no que diz respeito a eles. Não quero soar grosseiro, mas esses “argumentos” são tão... ruins, que me surpreende alguém com qualquer capacidade mental usá-lo.
Assim, vamos ver quais são os piores argumentos dos Criacionistas de Terra Jovem (podemos chama-los de Terrajovistas?) usam.

“Por que o autor usou yom e não outra palavra, como olam?”
Extremamente comum no meio Terrajovista, esse argumento levanta um questionamento, no mínimo, inútil. Suponha que te diga a seguinte frase: “Eu joguei a dama na piscina”. Estou eu falando da peça “dama” do xadrez, ou de uma senhora? Teria eu jogado a peça na piscina, ou empurrado uma mulher nela? Sendo assim, por que eu não usei a palavra “senhora” ou “mulher”?
Vê? O questionamento acima é análogo ao que ao Terrajovistas fazem ao questionar por que Moisés usou yom e não outra palavra. A palavra yom pode significar um longo período.[1] Desse modo, questionar o por que de Moisés não ter usado outra palavra para longo período, quando a palavra que ele usou pode significar um longo período, é um questionamento vazio e sem muito sentido.
Além disso, deve ser apontado o fato de que a tradução correta em Gênesis 1 provavelmente é “dia” mesmo. A questão é se esses dias são literais ou não, e há diversas razões exegéticas para se dizer que eles podem não ser literais. Por exemplo, o uso da linguagem poética em quiasma e repetições, a ausência de artigo definido na língua original, o uso de palavras de poesias (“luzeiro menor” e “luzeiro maior”), o uso óbvio de metáforas (Gênesis 2:24), etc.
Ao falar que a palavra “dia” de Gênesis 1 é usada de modo metafórico, seremos levados ao outro “argumento” dos Terrajovistas...

“Se você não considerar Gênesis totalmente literal, você logo estará dizendo que a ressurreição de Jesus não foi literal!”
Esse sim é o pior argumento dos Criacionistas de Terra Jovem. Ele é tão ruim, mas tão ruim, que qualquer ser pensante deveria repensar sua existência depois de usá-lo.
Ei, você! Leia os seguintes textos:

Disse Deus: "Haja luminares no firmamento do céu para separar o dia da noite. Sirvam eles de sinais para marcar estações, dias e anos, e sirvam de luminares no firmamento do céu para iluminar a terra". E assim foi.
Deus fez os dois grandes luminares: o maior para governar o dia e o menor para governar a noite; fez também as estrelas.
Gênesis 1:14-16

Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne.
Gênesis 2:24

A terra, porém, ajudou a mulher, abrindo a boca e engolindo o rio que o dragão fizera jorrar da sua boca.
O dragão irou-se contra a mulher e saiu para guerrear contra o restante da sua descendência, os que obedecem aos mandamentos de Deus e se mantêm fiéis ao testemunho de Jesus.
Então o dragão se pôs em pé na areia do mar.
Apocalipse 12:16-18

Acho que, então, devemos dizer que a lua literalmente é um luminar que emite luz, que quando as pessoas fazem sexo elas literalmente se fundem, e que no fim dos tempos vai vir um grande dragão que vai brigar com uma mulher por aí. Ah, não é literal? CUIDADO! Se você disser que essas passagens não são literais, logo logo vai estar dizendo que a ressurreição não é literal hein! Dã.
Não é o caso de interpretarmos como não-literal para encaixar a ciência moderna no texto, mas porque há razões exegéticas para entendermos que esse não é o caso.
O Dr. Michael Heiser expõe o que acha desse movimento “literalista” de interpretar as Escrituras:

Eu diria algo assim: a interpretação literalista é um bom caminho a se seguir, mas não é o único caminho, e em diversas passagens não é o caminho crucial. Em vários casos, você vai se enganar com relação ao que a Escritura está ensinando se você tiver apenas o literalismo na sua mente – Se essa for a sua única perspectiva de como a Bíblia pode ser legitimamente entendida em qualquer parte da Escritura. Isso [o literalismo] é algo que as pessoas ensinam muito quando se fala de profecia. Bom, adivinhe? As profecias do Antigo Testamento não eram sempre cumpridas literalmente. Isso é muito fácil de se perceber quando você vê as referências no Novo Testamento citando o Antigo. Por exemplo, em Oséias 11:1 diz: “do Egito chamei a meu filho”, mas Mateus [2:15] cita isso quando fala de Jesus, Maria e José, quando eles levam Jesus de volta do Egito. E adivinha o que mais? Oséias 11:1 nem ao menos é uma profecia. É uma referência ao tempo passado, que se refere ao êxodo de Israel do Egito, e Mateus vê isso como uma analogia a Jesus quando sai do Egito. Onde está o literalismo ali?[2]

Essa noção literalista não é crucial para a inerrância das Escrituras. Norman Geisler diz que essa insistência dos Terrajovistas em dizer que a crença numa Terra Antiga levanta duvidas sobre o restante da Palavra de Deus é apenas um exemplo de falácia do declive escorregadio.[3] Ou seja, estão dizendo que se deixarmos A acontecer, logo deixaremos Z acontecer. O que é simplesmente falacioso.
Geisler prossegue dizendo que isso não aconteceu com ele (que é um dos maiores defensores da inerrância atualmente!) e nem com a grande maioria dos fundadores do movimento da inerrância dos últimos 100 anos.[4] “É um fato”, diz Geisler, “que não existe conexão lógica necessária entre a crença de uma pessoa em um universo antigo e na descrença na Palavra de Deus.”[5] 
Esse questionamento dos Terrajovistas mostra claramente como o movimento de Terra Jovem está se tornando uma seita, colocando medo em seus adeptos caso não concordem com eles. Essa é a tática principal das seitas para manter seus membros presos a elas.

“A Bíblia é simples! Sua interpretação é muito complicada para um livro que até uma criança pode entender!”
“...nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada; Falando disto, como em todas as suas epístolas, entre as quais há pontos difíceis de entender. que os indoutos e inconstantes torcem, e igualmente as outras Escrituras, para sua própria perdição.” (2 Pedro 3:15,16)
Esse simples versículo já refuta a ideia de que a Bíblia é um livro simples. Mas não vamos parar por aqui. É verdade que há certos versículos que são simples, e que até mesmo uma criança pode entender o evangelho. Mas a Bíblia não é um livro simples. Isso é só uma desculpa pra se ficar na superfície e não estudar a Palavra de Deus por preguiça ou ficas nesse “super misticismo” de que a Bíblia é um super livro. Veja se essas passagens são simples:

Doutra maneira, que farão os que se batizam pelos mortos, se absolutamente os mortos não ressuscitam? Por que se batizam eles então pelos mortos? (1 Coríntios 15:29)

E então? Devemos nos batizar pelos mortos? Devemos imitar os Mórmons e fazer o batismo pelos mortos, pensando na ressurreição final?

São também sete reis. Cinco já caíram, um ainda existe, e o outro ainda não surgiu; mas, quando surgir, deverá permanecer durante pouco tempo.
A besta que era, e agora não é, é o oitavo rei. É um dos sete, e caminha para a perdição. (Apocalipse 17:10,11)

São sete ou oito reis? Como o oitavo rei é um dos sete reis? O que há de simples nessa passagem?

[Jesus] O qual é imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação (Colossenses 1:15)

Jesus é Deus e nunca começou a existir, ou ele foi o primeiro gerado de toda a criação? A que o termo “primogênito” se refere? O que significa πρωτότοκος [prototokos]?

Deus está na assembléia divina; julga no meio dos deuses:
Até quando julgareis injustamente, e tereis respeito às pessoas dos ímpios?
Fazei justiça ao pobre e ao órfão; procedei retamente com o aflito e o desamparado.
Livrai o pobre e o necessitado, livrai-os das mãos dos ímpios.
Eles nada sabem, nem entendem; andam vagueando às escuras; abalam-se todos os fundamentos da terra.
Eu disse: Vós sois deuses, e filhos do Altíssimo, todos vós. (Salmos 82:1-6)

O Deus Trino é o único Elohim? Ou há deuses menores que são os filhos de Deus? Como entender que esses “deuses” são apenas juízes se não há relato de Deus escolhendo judeus para julgar as nações fora de Israel?
Não são respostas simples para esses versos. A “leitura plena e simples” do texto nos faz crer que devemos nos batizar pelos mortos, ensinar que Jesus foi criado e que o henoteísmo é bíblico. Seriamos um mix de Testemunhas de Jeová com Mórmons! Mas quem estuda esses textos a fundo sabe que eles não ensinam isso.[6]
A Bíblia não é um livro simples. Talvez ela tenha sido mais simples quando foi escrita, já que os leitores viviam no contexto em que ela foi escrita. Mas nós temos um distanciamento cultural e linguístico muito grande.
Normalmente, pessoas como Kent Hovind dizem que se você der a Bíblia para qualquer pessoa na rua ela sempre chegará a conclusão de que Deus criou tudo em seis dias. Qualquer pessoa na rua também chegaria a conclusão de que Jesus é ontologicamente menor do que o Pai (João 14:28). Mas interpretar o texto sem estuda-lo é o mesmo que encher o prato de carne para ser devorada pelas seitas.
Em suma, esses são os argumentos dos Terrajovistas que julgo serem os piores. Outros argumentos foram respondidos no meu livro A Gênese em Gênesis, então se tiver interesse pode compra-lo no site do Clube de Autores ou na Amazon.



[1] Em 1 Reis 1:1 é traduzido para “idade”. Em 1 Reis 11:42 ela é usada para um período de quarenta anos. Em 2 Crônicas 21:19 é usado duas vezes, uma se refere a “anos” e outra a “tempo”. Em Zacarias 14:7-9 yom é acompanhado de um numeral e se refere a um período de 1000 anos. Salmo 90:1-7 também usa yom com as palavras “tarde” e “manhã” se referindo há um período “como de mil anos”.
[2] Sentinel Apologetics, Michael Heiser - Top 10 Myths about Bible Study, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=15PT8EVN1UQ; acesso 19/03/2019
[3] Norman Geisler, A Responde to Ken Ham and Answers in Genesis on does inerrancy require believe in a Young Earth?, disponível em https://normangeisler.com/a-response-to-ken-ham-and-answers-in-genesis-on-does-inerrancy-require-believe-in-a-young-earth/; acesso 19/03/2019
[4] Ibid.
[5] Ibid.
[6] Apesar de existirem cristãos como Michael Heiser que defendem a ideia de um Concílio Divino. Veja: HEISER, Michael. The unseen realm: Recovering the Supernatural Worldview of the Bible, Bellingham, WA: Lexham Press, 2015; e HEISER, Michael. Supernatural: What the Bible Teaches About the Unseen World - and Why It Matters, Bellingham, WA: Lexham Press, 2015.

sábado, 16 de março de 2019

Como o Answers in Genesis fortaleceu a defesa de uma terra antiga?



Bruce Gordon fez uma das críticas mais severas ao Criacionismo de Terra Jovem, tanto na área da ciência quando da teologia.[1] Um dos argumentos de Gordon é que Gênesis 1:1 aconteceu antes do primeiro dia, permitindo assim um tempo não-especificado desde a criação até o que é narrado em Gênesis 1:3.[2]
Agora, se você quiser saber das várias razões exegéticas do porque devemos interpretar o verso 1 como um evento independente dos dias de criação, de modo que ocorreu há um tempo não-específico antes do primeiro dia, você pode adquirir meu livro.[3]
O site Answers in Genesis (talvez o maior ministério defensor do Criacionismo de Terra Jovem da atualidade) forneceu uma resposta a Gordon, a qual eu respondi em meu livro.[4] Mas mesmo se a resposta deles estiver correta, ela refutaria o Criacionismo de Terra Antiga?
Na resposta, Ashby L. Camp responde dizendo que a expressão “céus e terra” em Gênesis 1:1 engloba a totalidade da criação: “Necessariamente são incluídas todas as coisas nos versos 3-31, o que quer dizer que o verso tem a função de introdução encapsulada dos detalhes que vão ocorrer no restante do capítulo.”[5]
Os argumentos fornecidos para essa conclusão foram respondidos no meu livro, mas independente disso, vamos considerar que Camp tem a conclusão correta. O que está sendo dito, em outras palavras, é que Gênesis 1:1 inclui tudo o que ocorreu nos versos 3-31, servindo como um resumo do que vai acontecer depois.
Parece, contudo, que essa conclusão prova justamente o contrário do que os proponentes da terra jovem desejam. Considere o versículo 2 de Gênesis 1:

E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. (Gênesis 1:2)

A expressão “sem forma e vazia” não significa que a terra não existia. Afinal, o texto começa dizendo que essas eram as propriedades da terra, e que nesse estado já havia água, sobre a qual o Espírito de Deus se movia.
As palavras hebraicas que são traduzidas para “sem forma e vazia” são tohu e bohu. John Walton fez uma análise do sentido da palavra tohu, e em todas as 32 vezes em que ela é usada nas Escrituras, ela nunca tem o sentido de descrever a forma material de algo (veja:1 Samuel 12:21; Jó 6:18; 12:24; 26:7; Isaías 24:10; 49:4)[6] Walton diz:

Os contextos em que essas palavras ocorrem e as frases usadas em paralelo sugerem que, ao contrário [de uma descrição material], que a palavra descreve aquilo que não é funcional, sem ter propósito e geralmente não produtivo em termos humanos. Aplicando-a como um termo descritivo a substantivos que representam áreas geográficas, nações, cidades, pessoas ou ídolos, todos sugerem a mesma conclusão. Uma palavra que tivesse relação com a forma material não serviria bem nesses contextos. [7]

Dito de outro modo, tohu e bohu indicam uma terra sem função e vazia. E é exatamente isso o que Deus faz nos seis períodos na sequência:

Dia 1 – Separação da luz e das trevas (Função de Dia e de Noite, Gên. 1:5)
Dia 2 – Separação das águas de cima das águas de baixo (Função do Céu, Gên. 1:8)
Dia 3 (1) – Separação das águas e da terra (Função dos Mares e da Terra, Gên. 1:10)
Dia 3 (2) – A terra produz a vegetação (Cheia de vegetação, Gên. 1:11-12)
Dia 4 – Os luminares são para marcar dias, estações e anos (Cheia e com função, Gên. 1:14-16)
Dia 5 – As águas agora têm criaturas (Cheia de animais aquáticos, Gên. 1:20-21)
Dia 5 (2) – Os céus agora têm aves (Gên 1:21)
Dia 6 – A terra agora tem animais e humanos (Gên 1:24-31)

Tanto os animais marinhos quando os humanos têm a função de encher o mundo (1:22; 28). Ou seja, Deus criou tudo com função, e os seres criados o ajuda a encher o que antes estava vazio.[8]
Se, porém, o verso 1 é um texto que engloba os versos 3-31 e o verso 2 é o que começa a narrativa, então o texto de Gênesis 1 não fala da criação do universo. Consequentemente, nada ali impede que a criação tenha ocorrido há bilhões de anos. O universo e a terra não começaram no “que haja luz”. Eles começaram, na verdade, muito antes, antes da terra sem função e vazia.
Portanto, se o site Answers in Genesis estiver correto, nada na Bíblia exclui um universo e uma terra antigos. E o propósito de todo o ministério cai por água abaixo.
Ainda assim, é importante ressaltar que a conclusão de Walton com relação a tohu e bohu não dependem de 1:1 ser um resumo de 1:3-31. Assim, independente da sua interpretação de 1:1, ainda pode ser adotada a interpretação funcional de Walton, ainda que junto de uma interpretação de criação material.



[1] GORDON, Bruce. Scandal of the Evangelical Mind: A Biblical and Scientific Critique of Young-Earth Creationism, 13/10/2014, disponível em http://researcherslinks.com/current-issues/Scandal-of-the-Evangelical-Mind-A-Biblical-and-Scientific-Critique-of-Young-Earth-Creationism/9/5/43/html;; acesso 16/03/2019
[2] Ibid. p. 5
[3] Veja: FORTI, Felipe S. A gênese em gênesis: solucionando a controvérsia das eras, 2ª Ed., São Paulo: Ed. do Autor, 2019.
[4] Ibid. p. 69
[5] Answers in Gênesis, A Reply to Bruce Gordon’s Biblical Critique of Young-Earth Creationism, 2015, p. 3, disponível em https://assets.answersingenesis.org/doc/articles/pdf-versions/arj/v8/reply-bruce-gordon-young-earth-creationism.pdf; acesso 16/03/2019
[6] WALTON, John. The lost world of genesis one: ancient cosmology and the origins debate, Downers Grove: InterVarsity Press, 2009, p. 47-48.
[7] Ibid. p. 48
[8] Walton não acredita que Gênesis 1 fale de origens materiais, apenas origens funcionais. Eu, contudo, diferente de Walton, não acredito que a criação do texto de Gênesis seja apenas sobre atribuir funções, mas que envolve ambos: criar e atribuir funções.