quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Por que a psicologia >não< é anticristã? - Resposta a Rodrigo Mocellin (de novo)

Nosso querido pastor youtuber está de volta. Não que ele tenha ido pra muito longe ou parado de falar coisas altamente pertinentes, mas pelo efeito dramático e igualmente humorístico no tom do começo do texto, achei interessante anunciar dessa maneira as grandes “contribuições” de Rodrigo Mocellin.

Em seu último vídeo, intitulado Por que a psicologia é anticristã?, Mocellin ataca novamente a psicologia (ou psiquiatria, nem ele mesmo parece saber). O que surpreende dessa vez é que, diferente de seus últimos 1000 vídeos sobre o assunto, ele não recicla o mesmo material quote-mined (pelo menos, não o vídeo inteiro).

Talvez você pense que não devemos dar “palco” para um “maluco” desses. E eu concordaria em circunstâncias normais. Mas, é a saúde e a espiritualidade das pessoas que está em jogo. Além disso, essa é uma ótima oportunidade pra ensinar lógica e algo sobre a Bíblia.

Para a surpresa de um total de 0 pessoas, Mocellin começa seu vídeo falando como ele “mexeu com o bezerro de ouro” de muitos pastores. Novamente, para a surpresa de vários ninguéns, ele começa com seu jogo de retórica do medo, colocando na mente de quem o segue que a psicologia é uma espécie de ídolo, e que apenas ele está do lado de Deus. Esse jogo psicológico manipulativo continua por todo e vídeo e está presente em todos os seus vídeos sobre o assunto.

Pelo bem do argumento, no último texto eu concedi a falsa equivalência entre psicologia e psiquiatria que ele faz. Mas, pensando agora, parece que ele realmente não sabe que são disciplinas distintas.

De todo modo, ele começa o vídeo citando John MacArthur. MacArthur talvez tenha algum valor teológico (embora eu ache que, como pastor e apologeta, ele não tem grande contribuição). A citação é a mesma que ele faz no seu Twitter:

“A pressa em adotar a psicologia dentro da Igreja é, francamente, incompreensível. A psicologia e o cristianismo têm sido inimigos desde o início” (J. Macarthur- Introdução ao Aconselhamento Bíblico)

 

Em seguida, ele cita Leonardo Abrahão, que diz que embora exista psicóloga cristã, não existe “psicologia cristã”.

Aqui nós vemos a visão dicotômica que Mocellin tem da realidade (fruto de seu "pressuposicionalismo" extremo): ele acha que pra algo ter uma verdade compatível com a fé cristã e a Bíblia, esse algo deve ter como pressuposto algo que está na Bíblia – qualquer coisa fora disso é “secular” e contradiz o cristianismo.

Talvez o maior problema dessa visão seja seu pressuposto de que a Bíblia tem que responder a todas as questões do mundo. Acredite, ela não tem que fazer isso e não faz. A Bíblia não responde a grande parte das perguntas da experiência humana – ela não fala sobre questões gastronômicas, científicas modernas, filosofias modernas, tecnológicas, bioquímicas etc. Mas é possível partir da Bíblia para executar alguma dessas disciplinas? Talvez algumas sim, mas outras com certeza não. Considere a gastronomia como exemplo. A gastronomia depende de uma ciência natural que eu garanto que não dá a mínima para os “pressupostos cristãos”: a química. Existe químico e gastrônomo cristão? Existe. Sabe o que não existe? -> química e gastronomia cristãs.

Não existe veganismo cristão, flamenguismo cristão, cardiologia cristã, sotaque cristão, oftalmologia cristã, ateísmo cristão e nem odontologia cristã. Nem por isso Mocellin deixa de ter um sotaque, ou de consultar oftalmologista e odontologista, ou de ir à um bom restaurante.

Sabe o que faz com que Mocellin não vá contra nenhuma dessas disciplinas, embora nenhuma delas tenha “pressupostos cristãos”? O fato de que ele sabe que uma disciplina não precisa, necessariamente, ter uma “abordagem cristã”, ela precisa apenas não contradizer a fé cristã. O jogo retórico do argumento dele é justamente usado para que o seu espectador concorde com ele (e, talvez, eventualmente compre seu curso miraculoso).

Após tudo isso, Mocellin fala sobre como a Bíblia e a psicologia são opostas, pois ambas tratam do comportamento humano. O ponto que ele tenta fazer aqui é o de dizer que há uma dicotomia aqui: ou você trata o comportamento humano com a Bíblia ou com a psicologia ateísta.

Novamente, é uma visão antagônica equivocada. Suponha, por exemplo, que Rodney Mucillon (nome fictício) tenha problemas com compulsão à mentira. Ele, então, pede aconselhamento pastoral. Durante esse aconselhamento, o pastor não fala apenas da Bíblia, mas também de experiências pessoais, questões éticas e dá conselhos, os quais, embora alguns baseados na Bíblia, outros vêm da experiência social humana dele mesmo como indivíduo. Será que Mucillon teria que escolher entre a Bíblia ou o aconselhamento pastoral? Já que a Bíblia diz que o novo homem deve abandonar a mentira (Efésios 4.22-25), não seria ela o bastante para lidar com isso?

Nesse exemplo, vemos o grande problema do argumento de Mocellin: a Bíblia diz o que é errado e o indivíduo toma consciência disso, mas ela não diz como ele deve buscar a melhora. O Espírito Santo pode guiar o caminho, assim como a oração pode fazer parte do processo, mas isso não significa que outros métodos que não anulem estes não possam ser usados.

Se esse tipo de argumento fosse levado a sério, imagine como ficariam disciplinas como a ética filosófica e o direito. O direito teria que ser anulado, pois a Bíblia diz que quem faz justiça é Deus, não os homens em um tribunal. Porque, afinal, existem advogados e juízes cristãos, mas não existe advocacia cristã, não é mesmo?

Sobre ética, imagine se não pudéssemos seguir certos aspectos de teorias ético-normativas, como a ética deontológica ou ética de valor. A propósito, Michael Jones tem um vídeo apenas demonstrando como o Novo Testamento usou conceitos da ética aristotélica.

Falando em ética, Mocellin fala sobre problemas morais, os quais ele diz serem o mesmo que “pecado”. Ele questiona “Qual abordagem da psicologia receita ou recomenda Cristo como o único solucionador de nossos problemas morais?”. Deixando de lado toda a discussão do significado de “pecado” (que é mais abrangente do que simplesmente um “erro moral”), se fossemos seguir o argumento de Mocellin às últimas consequências nós teríamos que dizer que é impossível um ateu ter qualquer comportamento moral. Porque ele nunca seria corrigido pela Bíblia (a não ser que se convertesse).

O grande problema de Mocellin é achar que a abordagem bíblica é restrita apenas a algum tipo de ação sobrenatural mágica. O que eu quero dizer com isso? Para ilustrar, é como se houvesse algum “poder” dentro do ser humano que age mudando internamente a sua alma com alguma espécie de energia divina. Essa não é a visão bíblica do sobrenatural.

Para os autores bíblicos, o mundo natural simplesmente “não existe” – tudo é sobrenatural. Como John Walton explica:

... não existe o conceito de um mundo “natural” no pensamento do antigo Oriente Próximo. A dicotomia entre o natural e o sobrenatural é relativamente recente.

[...]

Nada acontecia independente da divindade. [...] Os israelitas, assim como todo mundo no mundo antigo, criam [...] que todo evento era um ato da divindade – toda planta que crescia, todo bebê que nascia, toda gota de chuva e todo desastre natural eram atos de Deus. Nenhuma lei “natural” governava o cosmos; a divindade ordenava o cosmos ou era inerente a ele. Não havia “milagres” (no sentido de eventos que fogem daquilo que é “natural”), havia apenas sinais da atividade divina...[1]


Apesar da divisão entre natural e sobrenatural ser recente e útil para nossa sistematização da realidade (além de sabermos, certamente, que leis naturais existem, diferente do que os antigos acreditavam), há um princípio importante que pode ser aplicado aqui: Deus age por meio do natural, não aparte dele. A ideia é como a de um programador de jogos online: você pode estar jogando no mundo virtual, mas o programador pode realizar atos virtuais por meio da realidade digital para interagir com a vida do seu personagem.

Mocellin cita o Salmo 19.7a, que diz que “A lei do senhor é perfeita e restaura a alma” (ARA). Para um completo entendimento desse versículo, vamos dar uma olhada... isso mesmo! Nele inteiro e no versículo seguinte, já que parece ser um caso de paralelismo sinonímico. O que é um paralelismo sinonímico, você pergunta? Gordon Fee e Douglas Stuart explicam que nesse tipo de paralelismo, a “segunda linha, ou a linha subsequente, repete ou reforça o sentido da primeira linha...”[2]

Um bom exemplo de paralelismo sinonímico é... justamente o primeiro versículo do Salmo 19:

Os céus proclamam a glória de Deus,

e o firmamento anuncia as obras das suas mãos.

 

Perceba como a segunda linha explica exatamente a ideia da primeira, mas com outras palavras. O mesmo acontece no texto usado por Mocellin:

A lei do Senhor é perfeita e restaura a alma; o testemunho do Senhor é fiel e dá sabedoria aos símplices.

Os preceitos do Senhor são retos e alegram o coração; o mandamento do Senhor é puro e ilumina os olhos.

 

Observe que “restaura a alma” está em paralelo com “alegram o coração”. Por quê? Porque o que o autor está falando é de uma restauração como metáfora para a alegria trazida pela obediência aos mandamentos de Deus.  Isso porque, como ocorre na teologia verotestamentária, a benção e a maldição estão ligadas estritamente à obediência e à rebeldia (cf. Lv 26; Dt 32). Assim, o texto não fala sobre um tipo de “super alegria”, no sentido de cura como Mocellin deduz, mas sim de ter uma vida alegre na presença de Deus. Essa alegria estava ligada às posses, gado e coisas do tipo. Não é uma teologia da prosperidade, mas sim uma promessa de aliança que fazia sentido na relação de Deus com os autores do Antigo Testamento – não haveria maldição sobre o gado e as posses deles se seguissem a Deus.

Depois disso, ele fala, citando Dave Hunt, sobre a psicologia não ser ciência, pois se baseia no subjetivo e não no objetivo. Meu amigo Acrizio Souza deu uma boa resposta a esse ponto:

...citando Dave Hunt, ele volta ao ponto de que a psicologia não pode ser considerada uma ciência pois ela aparentemente lidaria com aspectos subjetivos, não analisáveis por ferramentas científicas. O problema é que essa afirmação é falsa. Apesar do elemento subjetivo que há no ser humano, existem vários aspectos objetivos em nossa natureza. Aspectos como seleção sexual, capacidade cognitiva, escolhas morais e tendências a aderir certos comportamentos são elementos objetivos, moldados por fatores como raça, etnia, localização geográfica, influência genética e do ambiente, e todos esses fatores possuem dados que são coletados e analisados por psicólogos profissionais. A psicologia depende cada vez mais de análises estatísticas e análise de dados. Isso pode ser visto no fato de existir uma área chamada “Estatística Psicológica”, que se trata da aplicação de fórmulas matemáticas no estudo da mente e comportamento humano.[3]


(É também válido falar que o Modellin muitas vezes se vale de críticas à psiquiatria pra criticar a psicologia, o que mostra ignorância ou desonestidade.)

Ele então parte para o argumento de que podemos ir ao médico porque a Bíblia não é um livro de ciências “embora ela esteja certa cientificamente”, mas deixou claras as instruções de como lidar com depressão, rebeldia adolescente etc.

Adoraria saber onde estão essas instruções. Mas, independente disso, ele diz que o ateísmo de um psicólogo o faz ver o ser humano como um “acúmulo de átomos”. Ele repete esse ponto em seu Twitter:

Claro que são antagônicos. A psicologia é essencialmente ateísta. Para ela, a única coisa que existe é a matéria. “A ideia de uma alma imaterial que controla o corpo não tem lugar na ciência” (Donald Herb).

 

Novamente, o argumento como um todo é frágil. O fato de um ateu ver o ser humano como apenas um acúmulo de células não diz absolutamente nada sobre ele não poder tratar essa parte física do ser humano.

Considere como exemplo essa adaptação da ilustração de John Lennox sobre os carros e o criador do motor: por mais que eu estude tudo sobre o motor de um carro e saiba tudo sobre as leis de combustão, isso não me permite aferir que não há um designer do motor - Mesmo se eu acreditar que apenas o motor existe. Esse é um ponto importante: o fato de uma pessoa crer (em uma situação imaginária, pelo amor de Deus!) que apenas o motor e as leis da combustão existem, e trabalhar no carro sob essa perspectiva não o desqualifica como técnico e muito menos faz com que suas crenças estejam erradas. Similarmente, um indivíduo que crê que o ser humano é apenas um ser físico não desqualifica seu trabalho, sua área de estudo, sua prática etc.

De fato, a parte física do ser humano tem que ser levada em consideração. Na questão da relação mente-corpo, muitas vezes a mente é vista como uma substância aparte que necessita que o cérebro funcione normalmente para que o indivíduo consiga “funcionar” de modo adequado. Essa causalidade é vista constantemente na interação entre corpo e mente. Como William Lane Craig e J. P. Moreland explicam:

No caso da mente e do corpo, estamos constantemente conscientes da causalidade entre eles. Eventos no corpo ou no cérebro (ser espetado por um alfinete, sofrer um ferimento na cabeça) podem causar sensações na alma (um sentimento de dor, perda de memória), e a alma pode provocar sensações no corpo (a preocupação pode causar úlceras, a pessoa pode livre e intencionalmente levantar o seu braço). Temos, dessa maneira, evidência incontestável de que a interação causal acontece, não havendo nenhuma razão suficiente para duvidar disso.[4]

 

De fato, como Paul Ekman bem apresentou, expressões faciais podem nos dar avais epistêmicos de estados mentais, como tristeza, raiva, alegria, desprezo e medo. Como Vitor Santos explica: “hoje em dia muitos pesquisadores no campo das emoções entendem as microexpressões faciais como mais um tipo de resposta desencadeada por estímulos emocionais e que pode sinalizar alterações no estado afetivo.”[5]

A próxima parte do vídeo eu não vejo muito o que comentar, já que é só uma questão do que o psicólogo pode ou não fazer. Mas ele diz o seguinte: quando um psicólogo encontra um paciente homossexual, ele nega sua fé ou nega a psicologia? Visto que o psicólogo, mesmo sendo cristão, não poderia tratar a homossexualidade de seu paciente. A isso, Acrizio responde:

Mesmo que ele queira permanecer em seus atos, um psicólogo cristão que entende que o relacionamento homossexual seja pecaminoso pode auxiliá-lo a viver uma vida digna dentro de suas crenças. Se isso não pudesse ser feito, cristão nenhum deveria estar na Terra, pois no dia-a-dia temos de lidar com pessoas que vivem vidas longe dos mandamentos de Deus e que precisam de ajudas nossas. Nossa reprovação a certas práticas não nos impede de ajudá-las em determinados momentos e situações de suas vidas. É difícil, porém, enquanto estivermos neste mundo, temos de lidar com isso.[6]

 

Ele cita Freud que chamou a religião de neurose, mas falha em perceber que Oskar Pfister, um dos discípulos de Freud, era pastor e fez uma leitura cristã baseada no amor à Deus da tese de Freud. Segundo Pfister, o amor ao próximo e o amor a Cristo anula qualquer opressão causada pela moralidade cristã que Freud havia postulado.[7]

A próxima frase dele diz que as igrejas liberais “que acreditavam que a Bíblia não era suficiente” precisavam de algo a mais. Diga-me que você não sabe o que é liberalismo sem me dizer que você não sabe o que é liberalismo!

(Alguns minutos do vídeo são meio irrelevantes, pois já comentei aqui e no outro texto. Apenas lembremos que, para seguir os conselhos de Mocellin, teríamos que deixar de comer miojo. Afinal, a Bíblia é completamente insuficiente para a preparação de um miojo.)



[1] WALTON, John. The lost world of genesis one: ancient cosmology and the origins debate, Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2009, p. 18

[2] FEE, Gordon; STUART, Douglas. Entendes o que lês?: um guia para entender a Bíblia com auxílio da exegese e da hermenêutica, São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 238.

[3] Comentário feito em publicação no Facebook. Disponível em <https://www.facebook.com/acrizio.desouza/posts/pfbid08Pq5oS1SUWWxcWAxSjiWFXBuCYtYDJnZ9Q3s4eD8tudvADdXeMzL29PZFd5qCkPtl>; Acesso 22 de dez. 2022.

[4] CRAIG, William Lane; MORELAND, J. P. Filosofia e cosmovisão cristã, São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 305.

[5] SANTOS, Vitor. Linguagem corporal: guia prático para analisar e interpretar pessoas, São Paulo: Fontanar, 2022, p. 17 (Edição ePub)

[6] Comentário feito em publicação no Facebook. Disponível em <https://www.facebook.com/acrizio.desouza/posts/pfbid08Pq5oS1SUWWxcWAxSjiWFXBuCYtYDJnZ9Q3s4eD8tudvADdXeMzL29PZFd5qCkPtl>; Acesso 22 de dez. 2022.

[7] VELIQ, Fabiano. “Oskar Pfister e a crítica à concepção freudiana da religião”. Fractal: Revista de Psicologia, ISSN 1984-0292. Belo Horizonte, MG, v. 30, n. 2, p. 161-165. Mai-ago. 2018. Disponível em <https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/dissertatio/article/view/10450>. Acesso 22 de Dez. 2022.