Central para a questão da idade do mundo
está no que diz respeito à duração dos dias de Gênesis 1. Ora, o texto de
Gênesis 1:1-2 nos mostra duas possibilidades: (1) 1:1 ocorreu em um tempo
indeterminado antes da terra estar improdutiva[1]; e (2) 1:1 é um título que
resume o que acontecerá em 1:3-31[2]. Independente disso, 1:2
segue dizendo apenas um pano de fundo do que aconteceria em 1:3-31. A terra,
que era sem forma e vazia, agora está ficando produtiva e pronta para ser
preenchida.
Esse pano de fundo nos traz as palavras tohu e bohu, que são traduzidas por “sem forma” e “vazia”. John Walton fez
uma análise do sentido da palavra tohu,
e em todas as 32 vezes em que ela é usada nas Escrituras, ela nunca tem o
sentido de descrever a forma material de algo (veja:1 Samuel 12:21; Jó 6:18;
12:24; 26:7; Isaías 24:10; 49:4).[3] Walton diz:
Os contextos em que essas palavras ocorrem e as frases
usadas em paralelo sugerem que, ao contrário [de uma descrição material], a
palavra descreve aquilo que não é funcional, que não tem propósito e geralmente
não é produtivo em termos humanos. Aplicando-a como um termo descritivo a
substantivos que representam áreas geográficas, nações, cidades, pessoas ou
ídolos, todos sugerem a mesma conclusão. Uma palavra que tivesse relação com a
forma material não serviria bem nesses contextos.[4]
Assim, uma avaliação dos dias de Gênesis
1 deve começar em 1:3, não em 1:1. Afinal, cada dia começa com “E disse
Deus...”, e a primeira vez em que essa frase ocorre é em 1:3. Antes disso,
contudo, é preciso tirar três empecilhos que as táticas de medo dos
Criacionistas de Terra Jovem colocam na cabeça de seus seguidores:
Primeiro, se formos interpretar os dias
de Gênesis como não-literais, isso não
significa que vamos alegorizar ou ler como metáfora toda a Bíblia, a
crucificação, a ressurreição, etc. Quem diz que isso acontecerá está cometendo
a falácia do declive escorregadio, ou seja, não é porque se crê em A que logo
se escorregará e crerá em Z. Você
pode perceber que isso é apenas uma tática para por medo quando nota que essa
acusação não ocorre com, por exemplo, pessoas que tornam o milênio de
Apocalipse em metafórico. Ninguém escuta: “Puxa! Você é amilenista! Cuidado,
vai metaforizar a ressurreição em breve!”
Segundo, interpretar os dias de Gênesis
como metafóricos não é uma novidade criada para acomodar a ciência moderna ao
texto bíblico. Nós vemos um padrão interessante de interpretação de “dias” como
1.000 anos nos escritos judaicos apócrifos e comentários. Em 1 Enoque 93, temos
uma sessão chamada de “Apocalipse das Semanas”. Essa sessão descreve o plano de
Deus desde a criação até a nova criação em dez “semanas”, sendo cada semana um
período de tempo irregular. Alguns judeus também tinham uma visão específica
sobre o Shabbat como o fim de seis
milênios, onde o Shabbat seria um
descanso eterno. O Mishnah Tamid diz:
“No Shabbat eles vão dizer (Salmo 92), ‘Um Salmo, uma Canção para o dia de
sábado.’ (Salmo 93) [A última canção] é um salmo para o futuro, para o dia que
será completamente Shabbat por toda a eternidade” (7:4).
Em 2 Enoque 33, a semana da criação é
descrita como um período de 7.000 anos, sendo seguido por um “oitavo dia” de
tempo indeterminado: “E designei o oitavo dia, como sendo o primeiro dia criado
após a minha obra, e os sete primeiros como sendo ciclos de sete mil, e no
início dos oito mil, estipulei um tempo incontável, infinito, não medido por
anos, meses, semanas, dias ou horas” (2 Enoque 33:1).
No início do segundo século temos a
Epistola de Pseudo-Barnabé. Nela, o autor diz que os seis dias de Gênesis são
seis mil anos e quando Cristo vier reinará por mil anos, que é o sétimo dia.
Depois disso, começará a nova criação com o oitavo dia (Pseudo-Barnabé 15).[5]
Além desses, diversos pais da Igreja,
como Agostinho, Origenes, Justino Mártir, Irineu e Clemente já entendiam que
esses dias não eram literais.[6] Foi com o advento de Ellen
White, quando geólogos amadores começaram a criar o que chamam de “geologia do
dilúvio” baseando-se nas “visões” dela, que o Criacionismo de Terra Jovem
começou a se espalhar como “interpretação padrão” nas igrejas.
Por fim, precisamos entender que, apesar
de Gênesis 1-3 estar contando uma história que de fato ocorreu, diversos
elementos da narrativa mostram uma estrutura poética, repleta de metáforas. Por
exemplo, há uma clara estrutura de paralelismo no texto, com frases repetidas:
“E disse Deus...”
“Que haja... e houve...”
“E assim foi”
“E viu que era bom”
“E houve tarde e houve manhã”
Nessa narrativa, existem elementos que
claramente não são literais. Por exemplo, chamar a lua de “luzeiro menor”,
quando a lua não emite luz. Ou, mais pra frente, quando é dito que homem e
mulher se tornam uma só carne (não sei se te disseram, mas quando se faz o ato
do coito, não se torna um siamês com a pessoa).
Com essas barreiras completamente
derrubadas, podemos partir para uma exegese dos textos referentes aos dias da
semana de criação. Vejamos, então, o primeiro dia:
E disse Deus: Haja luz; e houve luz.
E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a
luz e as trevas.
E Deus chamou à luz Dia; e às trevas chamou Noite. E foi a
tarde e a manhã, o dia primeiro.
Gênesis 1:3-5
Ora, no primeiro dia, Deus não criou
nada material. “Mas nem a luz?!”, isso, nem a luz. Note que a “luz” que aparece
em 1:3 é chamada depois de “dia”. Ou seja, quando Deus diz “que haja luz”, ele
está fazendo o período de claro de um dia e lhe dando a função de ser as 12
primeiras horas do dia. As “trevas”, que vão chamadas de “noite” depois, não
foram criadas nesse primeiro dia, pois elas já existiam em 1:2.
Quanto ao primeiro dia, portanto, vemos
que Deus fez apenas a luz aparecer para ter a função de dia. Não é o caso de a
luz não existir antes, mas dela agora ter uma função. A frase “que haja luz”
pode ser interpretada simplesmente como “que haja dia”, já que é assim que o
próprio Deus chama a luz.
Mas você deve estar se perguntando:
“Bom, dia com noite dá 24 horas! Portanto, os dias são literais!”. É verdade
que o primeiro dia pode ser um dia literal. Contudo, ele mesmo é finalizado de
uma forma diferente dos outros dias. É o único dia que possui um número
cardinal com a palavra yom. O
hebraico traz echad yom, que deve ser
traduzido por “dia um”, não por “primeiro dia” (que seria rishom yom).
No segundo dia, temos a separação das
águas:
E disse Deus: Haja uma expansão no meio das
águas, e haja separação entre águas e águas.
E fez Deus a expansão, e fez separação entre as
águas que estavam debaixo da expansão e as águas que estavam sobre a expansão;
e assim foi.
E chamou Deus à expansão Céus, e foi a tarde e
a manhã, o dia segundo.
Gênesis 1:6-8
Um fato interessante do segundo dia é
que, além de ele também não ter nenhum ato de criação (Deus simplesmente
separou águas e chamou o firmamento/expansão de Céus), ele é o único dia que
não é chamado de “bom”. Isso se deve à crença do Antigo Oriente Médio de que
águas representavam o caos do mundo.
Claramente, os eventos desse dia podem
se encaixar em 24 horas. Isso não implica que necessariamente seja o caso, mas é uma possibilidade.
No terceiro dia, contudo, as coisas
ficam mais interessantes:
E disse Deus: Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num
lugar; e apareça a porção seca; e assim foi.
E chamou Deus à porção seca Terra; e ao ajuntamento das
águas chamou Mares; e viu Deus que era bom.
E disse Deus: Produza a terra erva verde, erva que
dê semente, árvore frutífera que dê fruto segundo a sua espécie, cuja semente
está nela sobre a terra; e assim foi.
E a terra produziu erva, erva dando
semente conforme a sua espécie, e a árvore frutífera, cuja semente está nela
conforme a sua espécie; e viu Deus que era bom.
E foi a tarde e a manhã, o dia terceiro.
Gênesis 1:9-13
O que nos interessa aqui é a segunda
atividade de Deus no dia. Ele, novamente, não criou nada, mas fez a terra
aparecer e deu a ela uma função: a de produzir vegetação. Você pode se
perguntar: “Ok, mas isso não pode acontecer em um período de 24 horas?” E a
resposta é: Não. Perceba que não é Deus
que traz a vegetação à existência, ele simplesmente dá essa função à terra, e o
texto diz que a própria terra
produziu a vegetação, com sementes.
Apesar de John Walton crer que os dias
de Gênesis são literais e que apenas há uma criação funcional, sua tese parece
dar suporte à tese de que os dias não são literais. Ora, em resposta ao
argumento de que a própria terra produziu algo, os Criacionistas de Terra Jovem
tentam acomodar o texto à sua interpretação dizendo que Deus acelerou o
processo. Não apenas o texto não diz nada sobre esse possível speed up, como também contradiz o
próprio proposito do texto. Como John Walton diz: “De uma perspectiva
funcional, o solo, a água e o princípio de portar sementes são todos muito
relacionados como algo essencial para a produção de comida”.[7]
Assim, como no terceiro dia Deus
claramente da a função para a terra e o texto diz que a terra cumpriu sua
função, fica nítido que o texto implica que o terceiro dia não é literal. De
fato, algo maior aponta para essa conclusão, quando vemos que todos os três
primeiros dias são apenas dias de estabelecer funções: “No primeiro dia, Deus
criou a base para o tempo; no segundo dia, a base para o clima; e no terceiro
dia, a base para a comida. Essas três grandes funções – tempo, clima e comida –
são o fundamento da vida”.[8]
Esse é um ponto forte na tese de Walton
que fortalece a não-literalidade do terceiro dia. A vegetação aparece e ela
mesma cumpre a sua função. William Lane Craig diz:
Todos nós sabemos quanto tempo leva, por exemplo, para uma
macieira crescer até se tornar uma árvore madura com frutas, que florescerá e
dará maçãs. Se o autor estivesse pensando aqui em um dia de 24 horas, ele teria
que imaginar algo que se parecesse com fotografia de lapso de tempo, onde você
teria o aparecimento de uma semente, e as pequenas plantas aparecem do solo, e
de repente elas crescem em uma árvore, aparecem então as flores, e as frutas
brotam da árvore. Eu simplesmente não consigo me convencer de que isso é o que
o autor antigo de Gênesis está imaginando.[9]
Uma outra possível objeção, é dizer que
está se negando o uniformitarianismo,
que é uma teoria científica que diz que a natureza se comportava no passado
como se comporta no presente. Assim, negando esse princípio, se afirma que a
vegetação podia crescer mais rápido naquele tempo. Essa resposta é apenas uma
tentativa ad hoc para salvar uma
interpretação falida. E, se nós concedêssemos validade a ela pelo bem do
argumento, poderíamos também dizer que os dias naquele tempo eram mais longos.
Concluímos, portanto, que o terceiro dia
claramente não é um período de 24 horas, e o próprio texto indica isso. O
primeiro dia provavelmente teve 24 horas e era literal, o segundo não há como
saber, mas o terceiro certamente não era. Dado o fato de que Deus estava dando
função à terra de produzir a vegetação, é pouco provável que ele iria acelerar
o processo de produção.
Continua...
[1]
Essa é a posição que eu defendo em A
gênese em gênesis: solucionando a controvérsia das eras, 2ª Ed., São Paulo:
Ed. do Autor, 2019.
[2]
Veja: Olhar Unificado, Bereshit v.s.
criacionismo de terra jovem, disponível em https://olharunificado.blogspot.com/2019/05/bereshit-vs-criacionismo-de-terra-jovem.html;
acesso 29/05/2019
[3]
WALTON, John. The lost world of genesis
one: ancient cosmology and the origins debate, Downers Grove: InterVarsity
Press, 2009, p. 47-48.
[4]
Ibid. p. 48
[5]
O texto referente a essas citações também se encontra em A gênese em gênesis, p. 43
[6]
Veja: Bruce L. Gordon, Scandal of the
Evangelical Mind: A Biblical and Scientific Critique of Young- Earth Creationism,
disponível em http://researcherslinks.com/current issues/Scandal-of-the-Evangelical-Mind-A-Biblical-and-Scientific-Critique-of-Young-Earth-Creationism/9/5/43;
acesso 14/04/2018
[7] WALTON, John. The
lost world of genesis one: ancient cosmology and the origins debate,
Downers Grove: InterVarsity Press, 2009, p. 58
[8]
Ibid.
[9]
Reasonable Faith. Excursus on Creation
of Life and Biological Diversity (Part 3): A Critique of the Literal
Interpretation, disponível em https://www.reasonablefaith.org/podcasts/defenders-podcast-series-3/excursus-on-creation-of-life-and-biological-diversity/excursus-on-creation-of-life-and-biological-diversity-part-3/;
acesso 31/05/2019
O primeiro dia não tem numeral cardinal, echad pode significar tanto "primeiro" quanto "um". Fora isso, o texto está excelente.
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