terça-feira, 4 de junho de 2019

Os Dias de Gênesis (Parte 1)



Central para a questão da idade do mundo está no que diz respeito à duração dos dias de Gênesis 1. Ora, o texto de Gênesis 1:1-2 nos mostra duas possibilidades: (1) 1:1 ocorreu em um tempo indeterminado antes da terra estar improdutiva[1]; e (2) 1:1 é um título que resume o que acontecerá em 1:3-31[2]. Independente disso, 1:2 segue dizendo apenas um pano de fundo do que aconteceria em 1:3-31. A terra, que era sem forma e vazia, agora está ficando produtiva e pronta para ser preenchida.
Esse pano de fundo nos traz as palavras tohu e bohu, que são traduzidas por “sem forma” e “vazia”. John Walton fez uma análise do sentido da palavra tohu, e em todas as 32 vezes em que ela é usada nas Escrituras, ela nunca tem o sentido de descrever a forma material de algo (veja:1 Samuel 12:21; Jó 6:18; 12:24; 26:7; Isaías 24:10; 49:4).[3] Walton diz:

Os contextos em que essas palavras ocorrem e as frases usadas em paralelo sugerem que, ao contrário [de uma descrição material], a palavra descreve aquilo que não é funcional, que não tem propósito e geralmente não é produtivo em termos humanos. Aplicando-a como um termo descritivo a substantivos que representam áreas geográficas, nações, cidades, pessoas ou ídolos, todos sugerem a mesma conclusão. Uma palavra que tivesse relação com a forma material não serviria bem nesses contextos.[4]

Assim, uma avaliação dos dias de Gênesis 1 deve começar em 1:3, não em 1:1. Afinal, cada dia começa com “E disse Deus...”, e a primeira vez em que essa frase ocorre é em 1:3. Antes disso, contudo, é preciso tirar três empecilhos que as táticas de medo dos Criacionistas de Terra Jovem colocam na cabeça de seus seguidores:
Primeiro, se formos interpretar os dias de Gênesis como não-literais, isso não significa que vamos alegorizar ou ler como metáfora toda a Bíblia, a crucificação, a ressurreição, etc. Quem diz que isso acontecerá está cometendo a falácia do declive escorregadio, ou seja, não é porque se crê em A que logo se escorregará e crerá em Z. Você pode perceber que isso é apenas uma tática para por medo quando nota que essa acusação não ocorre com, por exemplo, pessoas que tornam o milênio de Apocalipse em metafórico. Ninguém escuta: “Puxa! Você é amilenista! Cuidado, vai metaforizar a ressurreição em breve!”
Segundo, interpretar os dias de Gênesis como metafóricos não é uma novidade criada para acomodar a ciência moderna ao texto bíblico. Nós vemos um padrão interessante de interpretação de “dias” como 1.000 anos nos escritos judaicos apócrifos e comentários. Em 1 Enoque 93, temos uma sessão chamada de “Apocalipse das Semanas”. Essa sessão descreve o plano de Deus desde a criação até a nova criação em dez “semanas”, sendo cada semana um período de tempo irregular. Alguns judeus também tinham uma visão específica sobre o Shabbat como o fim de seis milênios, onde o Shabbat seria um descanso eterno. O Mishnah Tamid diz: “No Shabbat eles vão dizer (Salmo 92), ‘Um Salmo, uma Canção para o dia de sábado.’ (Salmo 93) [A última canção] é um salmo para o futuro, para o dia que será completamente Shabbat por toda a eternidade” (7:4).
Em 2 Enoque 33, a semana da criação é descrita como um período de 7.000 anos, sendo seguido por um “oitavo dia” de tempo indeterminado: “E designei o oitavo dia, como sendo o primeiro dia criado após a minha obra, e os sete primeiros como sendo ciclos de sete mil, e no início dos oito mil, estipulei um tempo incontável, infinito, não medido por anos, meses, semanas, dias ou horas” (2 Enoque 33:1).
No início do segundo século temos a Epistola de Pseudo-Barnabé. Nela, o autor diz que os seis dias de Gênesis são seis mil anos e quando Cristo vier reinará por mil anos, que é o sétimo dia. Depois disso, começará a nova criação com o oitavo dia (Pseudo-Barnabé 15).[5]
Além desses, diversos pais da Igreja, como Agostinho, Origenes, Justino Mártir, Irineu e Clemente já entendiam que esses dias não eram literais.[6] Foi com o advento de Ellen White, quando geólogos amadores começaram a criar o que chamam de “geologia do dilúvio” baseando-se nas “visões” dela, que o Criacionismo de Terra Jovem começou a se espalhar como “interpretação padrão” nas igrejas.
Por fim, precisamos entender que, apesar de Gênesis 1-3 estar contando uma história que de fato ocorreu, diversos elementos da narrativa mostram uma estrutura poética, repleta de metáforas. Por exemplo, há uma clara estrutura de paralelismo no texto, com frases repetidas:
“E disse Deus...”
“Que haja... e houve...”
“E assim foi”
“E viu que era bom”
“E houve tarde e houve manhã”
Nessa narrativa, existem elementos que claramente não são literais. Por exemplo, chamar a lua de “luzeiro menor”, quando a lua não emite luz. Ou, mais pra frente, quando é dito que homem e mulher se tornam uma só carne (não sei se te disseram, mas quando se faz o ato do coito, não se torna um siamês com a pessoa).
Com essas barreiras completamente derrubadas, podemos partir para uma exegese dos textos referentes aos dias da semana de criação. Vejamos, então, o primeiro dia:

E disse Deus: Haja luz; e houve luz.
E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas.
E Deus chamou à luz Dia; e às trevas chamou Noite. E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro.
Gênesis 1:3-5

Ora, no primeiro dia, Deus não criou nada material. “Mas nem a luz?!”, isso, nem a luz. Note que a “luz” que aparece em 1:3 é chamada depois de “dia”. Ou seja, quando Deus diz “que haja luz”, ele está fazendo o período de claro de um dia e lhe dando a função de ser as 12 primeiras horas do dia. As “trevas”, que vão chamadas de “noite” depois, não foram criadas nesse primeiro dia, pois elas já existiam em 1:2.
Quanto ao primeiro dia, portanto, vemos que Deus fez apenas a luz aparecer para ter a função de dia. Não é o caso de a luz não existir antes, mas dela agora ter uma função. A frase “que haja luz” pode ser interpretada simplesmente como “que haja dia”, já que é assim que o próprio Deus chama a luz.
Mas você deve estar se perguntando: “Bom, dia com noite dá 24 horas! Portanto, os dias são literais!”. É verdade que o primeiro dia pode ser um dia literal. Contudo, ele mesmo é finalizado de uma forma diferente dos outros dias. É o único dia que possui um número cardinal com a palavra yom. O hebraico traz echad yom, que deve ser traduzido por “dia um”, não por “primeiro dia” (que seria rishom yom).
No segundo dia, temos a separação das águas:

E disse Deus: Haja uma expansão no meio das águas, e haja separação entre águas e águas.
E fez Deus a expansão, e fez separação entre as águas que estavam debaixo da expansão e as águas que estavam sobre a expansão; e assim foi.
E chamou Deus à expansão Céus, e foi a tarde e a manhã, o dia segundo.
Gênesis 1:6-8

Um fato interessante do segundo dia é que, além de ele também não ter nenhum ato de criação (Deus simplesmente separou águas e chamou o firmamento/expansão de Céus), ele é o único dia que não é chamado de “bom”. Isso se deve à crença do Antigo Oriente Médio de que águas representavam o caos do mundo.
Claramente, os eventos desse dia podem se encaixar em 24 horas. Isso não implica que necessariamente seja o caso, mas é uma possibilidade.
No terceiro dia, contudo, as coisas ficam mais interessantes:

E disse Deus: Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num lugar; e apareça a porção seca; e assim foi.
E chamou Deus à porção seca Terra; e ao ajuntamento das águas chamou Mares; e viu Deus que era bom.
E disse Deus: Produza a terra erva verde, erva que dê semente, árvore frutífera que dê fruto segundo a sua espécie, cuja semente está nela sobre a terra; e assim foi.
E a terra produziu erva, erva dando semente conforme a sua espécie, e a árvore frutífera, cuja semente está nela conforme a sua espécie; e viu Deus que era bom.
E foi a tarde e a manhã, o dia terceiro.
Gênesis 1:9-13

O que nos interessa aqui é a segunda atividade de Deus no dia. Ele, novamente, não criou nada, mas fez a terra aparecer e deu a ela uma função: a de produzir vegetação. Você pode se perguntar: “Ok, mas isso não pode acontecer em um período de 24 horas?” E a resposta é: Não. Perceba que não é Deus que traz a vegetação à existência, ele simplesmente dá essa função à terra, e o texto diz que a própria terra produziu a vegetação, com sementes.
Apesar de John Walton crer que os dias de Gênesis são literais e que apenas há uma criação funcional, sua tese parece dar suporte à tese de que os dias não são literais. Ora, em resposta ao argumento de que a própria terra produziu algo, os Criacionistas de Terra Jovem tentam acomodar o texto à sua interpretação dizendo que Deus acelerou o processo. Não apenas o texto não diz nada sobre esse possível speed up, como também contradiz o próprio proposito do texto. Como John Walton diz: “De uma perspectiva funcional, o solo, a água e o princípio de portar sementes são todos muito relacionados como algo essencial para a produção de comida”.[7]
Assim, como no terceiro dia Deus claramente da a função para a terra e o texto diz que a terra cumpriu sua função, fica nítido que o texto implica que o terceiro dia não é literal. De fato, algo maior aponta para essa conclusão, quando vemos que todos os três primeiros dias são apenas dias de estabelecer funções: “No primeiro dia, Deus criou a base para o tempo; no segundo dia, a base para o clima; e no terceiro dia, a base para a comida. Essas três grandes funções – tempo, clima e comida – são o fundamento da vida”.[8]
Esse é um ponto forte na tese de Walton que fortalece a não-literalidade do terceiro dia. A vegetação aparece e ela mesma cumpre a sua função. William Lane Craig diz:

Todos nós sabemos quanto tempo leva, por exemplo, para uma macieira crescer até se tornar uma árvore madura com frutas, que florescerá e dará maçãs. Se o autor estivesse pensando aqui em um dia de 24 horas, ele teria que imaginar algo que se parecesse com fotografia de lapso de tempo, onde você teria o aparecimento de uma semente, e as pequenas plantas aparecem do solo, e de repente elas crescem em uma árvore, aparecem então as flores, e as frutas brotam da árvore. Eu simplesmente não consigo me convencer de que isso é o que o autor antigo de Gênesis está imaginando.[9]

Uma outra possível objeção, é dizer que está se negando o uniformitarianismo, que é uma teoria científica que diz que a natureza se comportava no passado como se comporta no presente. Assim, negando esse princípio, se afirma que a vegetação podia crescer mais rápido naquele tempo. Essa resposta é apenas uma tentativa ad hoc para salvar uma interpretação falida. E, se nós concedêssemos validade a ela pelo bem do argumento, poderíamos também dizer que os dias naquele tempo eram mais longos.
Concluímos, portanto, que o terceiro dia claramente não é um período de 24 horas, e o próprio texto indica isso. O primeiro dia provavelmente teve 24 horas e era literal, o segundo não há como saber, mas o terceiro certamente não era. Dado o fato de que Deus estava dando função à terra de produzir a vegetação, é pouco provável que ele iria acelerar o processo de produção.

Continua...



[1] Essa é a posição que eu defendo em A gênese em gênesis: solucionando a controvérsia das eras, 2ª Ed., São Paulo: Ed. do Autor, 2019.
[2] Veja: Olhar Unificado, Bereshit v.s. criacionismo de terra jovem, disponível em https://olharunificado.blogspot.com/2019/05/bereshit-vs-criacionismo-de-terra-jovem.html; acesso 29/05/2019
[3] WALTON, John. The lost world of genesis one: ancient cosmology and the origins debate, Downers Grove: InterVarsity Press, 2009, p. 47-48.
[4] Ibid. p. 48
[5] O texto referente a essas citações também se encontra em A gênese em gênesis, p. 43
[6] Veja: Bruce L. Gordon, Scandal of the Evangelical Mind: A Biblical and Scientific Critique of Young- Earth Creationism, disponível em http://researcherslinks.com/current issues/Scandal-of-the-Evangelical-Mind-A-Biblical-and-Scientific-Critique-of-Young-Earth-Creationism/9/5/43; acesso 14/04/2018
[7] WALTON, John. The lost world of genesis one: ancient cosmology and the origins debate, Downers Grove: InterVarsity Press, 2009, p. 58
[8] Ibid.
[9] Reasonable Faith. Excursus on Creation of Life and Biological Diversity (Part 3): A Critique of the Literal Interpretation, disponível em https://www.reasonablefaith.org/podcasts/defenders-podcast-series-3/excursus-on-creation-of-life-and-biological-diversity/excursus-on-creation-of-life-and-biological-diversity-part-3/; acesso 31/05/2019

Um comentário:

  1. O primeiro dia não tem numeral cardinal, echad pode significar tanto "primeiro" quanto "um". Fora isso, o texto está excelente.

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