quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Pastor Rodrigo Mocellin “dá lição” na psicologia. Será que ele acertou?

 Pastor Rodrigo Mocellin “dá lição” na psicologia. Será que ele acertou?


 

Há um curioso entrelaçar de eventos em minha vida atualmente. Ao mesmo tempo em que eu tenho praticamente dois empregos (um fixo e um como freelancer), também estou escrevendo meu TCC. Meu TCC é sobre Gênesis 1-11 e a compatibilidade do texto com uma criação antiga e a evolução. Esse tema não deve surpreender muito os leitores de longa data. Ainda assim, em meu pouco tempo para escrever algo “a mais”, como um inimigo da neutralidade intelectual evangélica e do negacionismo científico (aquele que nega a ciência verdadeira com a “ciência ‘verdadeira’”), eu resolvi tirar uns minutos para ver o que o pastor youtuberRodrigo Mocellin diz sobre a psicologia. E, Gosh.... me surpreendeu.

Não deveria me surpreender. Afinal, existem cristãos que acham que a Terra é plana e que tem 6.000 anos. Também existem os que acham que cloroquina funciona contra Covid. Mas, o analfabetismo científico e bíblico em prol de uma “verdade” obscura-e-altamente-secreta-e-reveladora que pode ser “descoberta” por qualquer um com internet – que é a pedra fundamental de todo o conspiracionismo que vemos por aí – consegue se superar a cada dia.

Nesse texto, pretendo responder a algumas alegações do Pr. Rodrigo Mocellin a respeito da psicologia. Não só isso, mas também ‘desroupar” seu discurso da roupagem retórica de alguém “que vê de cima”, bem como mostrar suas falácias lógicas. Dois vídeos serão comentados:

 

“Psicóloga ‘dá lição’ em Isadora Pompeu” - https://youtu.be/-iW4rmYt74g

“Depressão é doença?” - https://youtu.be/TDTnvmkfWKw

 

Ao início de sua fala, Mocellin começa com um tom irônico dizendo: “O que é a depressão? É um problema biológico desencadeado por algum fator ambiental. É considerada uma doença pela Organização Mundial da Saúde – esse órgão que nunca erra e que nunca mente, né?”

Aqui, Mocellin já começa com seu jogo retórico. A retórica da ironia aplicada apela para a ideia de dúvida. “Será que a OMS não é um órgão que mente?”. Essa pergunta já fica, a princípio, instaurada na mente do espectador, pois ela geraria uma pesquisa para se obter uma resposta. Entretanto, como o espectador já está no vídeo de Mocellin, então ele terá acesso à resposta dele mais rápido. Como a pergunta também é feita em tom irônico, a resposta já está implícita. A ironia dele continua quando diz que uma psicóloga recomendou ir ao médico – mesmo se ele demorar pra te atender – mas, diz ele que ela diz, “só não vá a Cristo” – algo que a psicóloga em questão nunca disse.

De fato (e aqui cabe um parêntese) estudos em psicologia revelam um benefício positivo (perdão o pleonasmo, mas eu precisava enfatizar isso) da religião intrínseca à saúde mental. Paulo Dalgalarrondo cita diversos estudos e meta-análises que visam buscar a relação entre a religiosidade e psicopatologias, e ele aponta o seguinte:

 

Considerando esse tema de pesquisa de modo geral, um grande número de estudos empíricos, nos últimos cem anos, procurou identificar em diversas populações a relação entre depressão, religião e religiosidade. Koenig e Larson (2001) revisaram esses trabalhos e identificaram 101 estudos no século XX que investigaram a associação entre religiosidade e depressão. Segundo essa revisão, dois-terços (60 de 93) dos estudos observacionais encontraram prevalências mais baixas de transtornos depressivos ou menos sintomas depressivos em pessoas mais religiosas. Desses estudos, 68% também identificaram uma relação “dose-efeito”, na qual quanto maior a religiosidade menor a freqüência de depressão. De 22 estudos prospectivos, 15 identificaram que as pessoas mais religiosas no início desenvolviam menos depressão ao longo do estudo. Finalmente, três em cinco estudos de intervenção, nos quais os participantes com depressão receberam ou participaram de intervenções religiosas (orações, conselhos religiosos, etc.), indicaram que aqueles que receberam tais intervenções (mais as “intervenções seculares”) melhoraram mais rapidamente do que aqueles que só receberam “intervenções seculares” (psicoterapia, aconselhamento ou medicação).[1]

 

A importância de apontar isso é mostrar que existem estudos que mostram uma relação direta entre a religião intrínseca (a realmente praticada) e a melhora da saúde mental. E ninguém esconde isso

Pr. Mocellin então começa seu ataque à depressão. Ele não nega que ela realmente exista, mas diz que não existem evidências de que ela tenha causas físicas. Aqui, ele direciona o espectador a outro vídeo, intitulado Depressão é doença?. Esse vídeo também começa com uma retórica de ironia, onde ele diz: “Nós, os homens modernos, não aprenderam (sic.) a lidar e pensar de maneira lógica – se todo mundo diz que a grama é rosa, então a grama deve ser rosa”. O estudo que ele cita, diz:

 

Um aspecto interessante nos estudos que examinamos foi o quão forte um efeito de eventos adversos da vida teve na depressão, sugerindo que o humor deprimido é uma resposta à vida das pessoas e não pode ser resumido a uma simples equação química.[2]

 

Duas coisas devem ser ditas: primeiro, aparentemente, a ciência “só presta” quando ela está de acordo com o viés de Mocellin. É interessante que ele extrapola as conclusões do estudo da seguinte forma:

 

Estudo diz: “...não pode ser resumido a uma simples equação química”

Mocellin diz: “...não é devido a fatores químicos”

 

Mas, extrapolações de lado, Mocellin ignora completamente análises do estudo “guarda-chuva” citado. Essas análises mostram o quão ignorante Modellin é no assunto. O professor Gitte Moos Knudsen, do departamento de neurologia do Copenhagen University Hospital, diz:

 

O principal erro [do estudo] é [...] dizer que a depressão é uma única doença com um único déficit bioquímico. Hoje, é amplamente aceito que a depressão é um transtorno heterogêneo com múltiplas potenciais causas subjacentes.[3]

 

O Dr. Michael Bloomfield também diz:

 

As descobertas desse estudo guarda-chuva realmente não são surpreendentes. A depressão possui diversos sintomas e eu creio que eu não tenha encontrado nenhum cientista ou psiquiatra sério que pense que todas as causas da depressão se devem a um único desbalanço químico de serotonina.[4]

 

O professor David Nutt, no Imperial College London, aponta o erro desse estudo, falando sobre os estudos analisados: “Essa meta análise cobre muito do que foi feito nos últimos 50 anos para explorar a relação do sistema de serotonina com a depressão. Infelizmente, todas essas variáveis vêm de medidas indiretas da função da serotonina ou de algo pior...”[5]. Ele também contrapõe o que o estudo diz ao final, de que não há evidência empírica para a teoria da serotonina na depressão:

 

Apenas em tempos recentes conseguimos desenvolver a tecnologia para medir o lançamento de serotonina no cérebro humano e, no primeiro estudo desse tipo (ainda sob análise), nós descobrimos uma capacidade reduzida de lançamento de serotonina em pessoas com depressão. Assim, descartar a hipótese da serotonina na depressão, nesse ponto, é algo prematuro.[6]

 

O professor Phil Cowen, da Universidade de Oxford, também aponta que “Nenhum profissional da saúde mental atualmente endossaria a visão de que uma condição heterogênea complexa como a depressão ocorre pela deficiência de um único neurotransmissor...”[7]

Com tudo isso, vemos que realmente existe uma deficiência no estudo citado por Mocellin. Mas, no mesmo vídeo, ele expressa certo ceticismo por conta do termo “teoria” e diz que os cientistas espalham teorias como se fossem “provas inerrantes”.

Creio que o uso da palavra “inerrante” seja parte da retórica do medo dele. Como cristãos, cremos em uma Bíblia inerrante. Mas, a cultura vê a ciência como inerrante! Essa afirmação cria uma relação de substituto: temos um X inerrante, não podemos crer em outro algo inerrante.

Infelizmente, para Mocellin (se essa for sua intenção, é claro), “inerrância” não é uma propriedade exclusiva da Bíblia e nem o que a torna inspirada. Como William Lane Craig explica: “Um livro pode ser inerrante sem ser inspirado. Você pode ter, por exemplo, uma lista telefônica que foi revisada minuciosamente e compilada de modo a ser inerrante. Mas isso não a torna inspirada”.[8]

Mas e quanto a alegação de “só uma teoria”? Isso é similar à estratégia de criacionistas ignorantes (não no sentido pejorativo da palavra) quando falando sobre a teoria do big bang ou a teoria da evolução. A afirmação de que tudo isso é “apenas teoria” parte de um desconhecimento do que significa uma teoria científica. Como Aaron Yilmaz explica: 

 

… teorias nascem de um volume crucial de pesquisas com revisão de pares, normalmente sujeitas a uma análise rigorosa e uma avaliação crítica da comunidade científica por anos antes da tentativa de ser aceita. Ademais, elas nunca surgem como opiniões vindas do nada.[9]

 

É, assim, simplesmente ignorância igualar uma teoria científica a um “chute”.

Mocellin então faz todo um jogo de retórica irônica para desqualificar a palavra de cientistas, dizendo que a teoria da serotonina foi sugerida pela primeira vez na década de 1960 e amplamente divulgada nos anos 90. Qual a importância disso? Que, conforme diz, isso coincide com o advento dos medicamentos para a depressão. Todo o jogo retórico dele é usado para convencer o ouvinte de que os estudos surgiram para vender medicamento, basicamente. 

A lógica dele é falha, pois é uma demonstração de raciocínio circular: ele assume que a motivação para os estudos seja a venda dos medicamentos seja e explica a existência dos estudos dessa forma. Mas ele não considera que há uma explicação bem mais simples: o medicamento foi popularizado quando os estudos foram amplamente divulgados porque as pessoas, vendo o resultado dos estudos, começaram a buscar mais. Ou, ao ver o resultado dos estudos, os médicos começaram a recomendar mais esses medicamentos para *surprise surprise* ajudar seus pacientes. Se você é um médico tentando ajudar um paciente e uma das explicações para o problema dele é a falta de serotonina, então você faz o que? Isso mesmo! Dá algo que crê resolver o problema. Todo o problema da lógica de Mocellin gira em torno de que ele pressupõe a verdade de sua conspiração e tenta interpretar os fatos a partir dela, o que é raciocínio circular.

Ele tenta provar que os cientistas e médicos não são confiáveis citando um artigo que mostra cientistas admitindo que mentiram sobre o açúcar, e usa isso pra falar que, portanto, todos os cientistas e médicos devem gerar desconfiança. Mas, isso é uma demonstração de falácia da composição: não é porque parte dos cientistas e médicos são picaretas que todos os cientistas e médicos o são. Seria como se eu argumentasse que só porque parte dos pastores são picaretas, portanto todos os pastores o são.

Também é uma associação preconceituosa dizer que todo um corpo de profissionais é desonesto por causa de alguns. Pela lógica de Mocellin, eu posso muito bem criar a conspiração de que os cientistas do estudo que ele mesmo citou querem invalidar a teoria da serotonina para fingir haver outra causa e vender outro medicamento no futuro. Ou que ele mesmo está usando esses estudos para vender seu curso sobre como a Bíblia lida com a depressão.

Para ser justo, ele “humildemente” fala sobre como os cientistas são homens falhos que podem interpretar os fatos errados ou distorcer os fatos. Mas, ele não aplica o mesmo critério a si mesmo: porque eu não devo crer que ele, como homem falho, não está interpretando os estudos errado (e, de fato, ele está) e até mesmo a Bíblia errado? 

Ele, então, muda o foco do argumento para falar sobre como coisas do cotidiano são tratadas como transtornos e que isso é muito confortável para a psicologia e psicoterapia. Isso é uma má representação dos fatos. O fato de que existem terapeutas picaretas que dão um diagnóstico errado para abusar de seu paciente não significa que o transtorno diagnosticado seja uma invenção da industria terapêutica e farmacêutica. Ele cita Allen Frances para fazer seu ponto, mas parece que não o leu direito. O próprio Frances diz o seguinte:

 

Alguns críticos radicais da psiquiatria se apegaram a suas ambiguidades definitórias para argumentar que a profissão nem deveria existir. […] Essa ladainha só pode ganhar crédito de teóricos de sofá sem experiência real de ter, tratar ou conviver com uma doença mental. Embora difícil de defini, um transtorno psiquiátrico é uma realidade dolorosíssima para quem sofre e para quem ama alguém que sofre. Voltar ao normal, conforme uso a expressão, não nega o valor do diagnóstico e do tratamento psiquiátrico. Ao contrário, é um esforço para manter a psiquiatria fazendo o que faz de bom dentro dos limites apropriados.[10]

 

Portanto, o autor não está dizendo que os transtornos são inventados a partir de problemas comuns, mas que os diagnósticos são realizados de forma abusiva. Mocellin fala então que a os problemas das pessoas são diagnosticados como algo que vem de um transtorno e “não do pecado, como diz a Bíblia”. O erro dele aqui é pressupor que um exclui o outro: um transtorno pode facilitar algum tipo de comportamento pecaminoso - como é o caso do transtorno de personalidade narcisista, por exemplo.

Voltando ao vídeo inicial (onde ele responde à psicóloga), ele tenta invalidar a psicologia como ciência comparando com matemática. Yup, isso mesmo.

Aparte de toda a discussão acerca da validade científica da psicologia (que realmente existe), ele parece confundir uma leitura cosmovisional dos dizeres da psicologia com o que a psicologia em si presume. O fato de que os psicólogos ateístas dizem que o corpo é tudo o que existe com impulsos eletromagnéticos não implica que você não possa ler a mesma teoria pressupondo que o corpo humano com impulsos eletromagnéticos existe com uma alma

Ele prossegue falando de “cura da depressão”, dizendo que os cientistas querem tratar o corpo físico sem considerar a alma. Mas absolutamente nada impede um indivíduo de tratar o corpo para que a alma consiga interagir corretamente com ele. Filósofos da mente que creem no dualismo corpo-alma geralmente fazem a analogia de um pianista com seu piano: se o piano estiver faltando teclas, então o pianista não conseguirá toca-lo direito. Similarmente, a alma não conseguirá agir no corpo se ele estiver com algum tipo de problema físico.

Ele cita alguns textos bíblicos descontextualizados para argumentar que cristãos não devem se sujeitar a crer nos médicos em questão. Mas ele falha no uso de suas próprias passagens. É óbvio que o texto que menciona a situação de Elias não cita remédios e problemas físicos: o texto foi escrito no antigo Oriente Próximo, onde os autores não tinham o conhecimento científico que temos hoje. Exigir esse tipo de conhecimento anacronistico é, no mínimo, desespero intelectual. Ele também falha em reconhecer que não é porque Deus cura Elias que ele vai agir da mesma forma com todos. Jesus curou cegos e paralíticos, mas todos os cegos e paralíticos devem apenas ter fé e serão curados? 

Há uma coisa que ele fala no começo do vídeo que eu deixei para o final. Ele diz que cristãos que aceitam os tratamentos psiquiátricos estão achando que Cristo não é suficiente. A psicóloga cristã Larissa Lima, ao falar da suficiência da Bíblia, diz o seguinte:

 

Com a premissa de que a Bíblia é suficiente, alguns cristãos dizem que não precisamos recorrer a psicólogos quando se fala de saúde mental. Mas é preciso lembrar que a Bíblia é suficiente para aquilo que ela se propõe, para assuntos relacionados à salvação das nossas almas. 

[…]

A Bíblia não se propõe a tratar um transtorno mental, como também não se propõe a curar um câncer. Essa não é a função dela. Mas a Palavra de Deus nos dá princípios e diretrizes para ler a ciência e filtrar tudo o que estudamos e direcionar nossas atitudes.[11]

 

Assim como a Bíblia, Cristo possui uma suficiência com propósito. Cristo pode curar a depressão com um medicamento, assim como pode curar o câncer com algum tratamento. Menosprezar tratamentos físicos em prol de supostos tratamentos sobrenaturais é uma distorção da forma como Deus age no mundo. Além disso, os autores bíblicos não distinguiam o natural do sobrenatural – eles viam atos naturais como algo tão sobrenatural quanto um milagre.


Em suma, a lógica de toda a argumentação de Mocellin é falha, falaciosa e, muitas vezes, baseada em uma representação errada dos estudos citados e de sua validade. Ele não interage com estudos contrários à sua conspiração. De fato, ele trata todos como estudos vendidos que fazem parte de um grande esquema global pra vender remédios – algo que, infelizmente, convence pessoas menos informadas e as leva para um buraco pior ainda. 




[1] DALGALARRONDO, Paulo. Religião, psicopatologia e saúde mental, Porto Alegre: Artmed, 2008. p. 184-185.

[2] Apud. https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/agencia-estado/2022/07/22/depressao-nao-e-causada-por-baixo-nivel-de-serotonina-diz-estudo.htm?

[3] expert reaction to a review paper on the ‘serotonin theory of depression’. 20 de Jul. 2022. Disponível em <https://www.sciencemediacentre.org/expert-reaction-to-a-review-paper-on-the-serotonin-theory-of-depression/>. Acesso 18 de Out. 2022.

[4] Ibid.

[5] Ibid.

[6] Ibid.

[7] Ibid.

[8] REASONABLE FAITH. Doctrine of revelation (Part 5): the properties of inspiration. 10 de Dez. 2014. Disponível em <https://www.reasonablefaith.org/podcasts/defenders-podcast-series-3/s3-doctrine-of-revelation/doctrine-of-revelation-part-5>. Acesso em 19 de Out. 2022

[9] YILMAZ, Aaron. Deliver us from evolution?: a christian biologist’s in-depth look at the evidence reveals a surprising harmony between science and God, Sehnsucht Publishing, 2019, p. 54

[10] FRANCES, Allen. Voltando ao normal: como o excesso de diagnósticos e a medicalização da vida estão acabando com a nossa sanidade e o que pode ser feito para retomarmos o controle, Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017 (grifo meu).

[11] LIMA, Larissa. Psicologia – série primeiros passos em cosmovisão cristã, Instituto Schaeffer de teologia e cultura, [2020?], p. 10.