POR QUE A APOLOGÉTICA DE TERRA JOVEM É
INÚTIL?
“Inútil” – talvez a sua primeira reação
ao ler o título deste post seja que a palavra escolhida para caracterizar a
apologética de terra jovem seja muito forte. E talvez seja mesmo. Mas, o fato
dela ser forte não a desqualifica para o caso em questão. A apologética de
terra jovem é inútil.
Para ser claro, é preciso fazer uma distinção
aqui: por “apologética de terra jovem”, me refiro ao que normalmente é chamada
de “ciência criacionista” – a tentativa de reconciliar a ciência com a interpretação
literalista e concordista[1] do texto de Gênesis 1-11,
com todas as suas peculiaridades: a negação da efetividade dos métodos de
datação, a geologia diluviana, apelo ao mistério (“Deus colocou a luz do jeito
que a vemos e isso não prova um universo antigo, isso é algo que não sabemos
explicar”) etc.[2]
Repare, no entanto, que isso não tem absolutamente nada a ver com o Design
Inteligente. O DI é aceito tanto por criacionistas de terra jovem quanto de
terra antiga[3]
e, pasme, até alguns teístas evolucionistas[4].
Mas então, por que a apologética de terra
jovem é inútil? Por vários motivos, os quais listarei abaixo:
1. Ela
visa provar uma terra jovem... mas e ai?
Pense nisso por um instante: suponha que
se consiga provar que a terra tem 6.000 anos. Se provou que os métodos de
datação não são tão confiáveis para idades longas, que um grande dilúvio
ocorreu e que o big bang é uma mentira. Ok, e ai?
Isso prova que Deus existe? Não.
Isso aumenta a probabilidade da
existência de Deus? Não.
Isso mostra que Jesus é Deus? Não.
Isso aumenta a probabilidade da
ressurreição de Jesus? Não.
Isso aumenta a confiabilidade na Bíblia?
Não.
Ou seja, não existe absolutamente nenhum benefício apologético vindo da “apologética de terra jovem”. Ela absolutamente não serve para nada.
2. Ela não prova nem a interpretação literalista e concordista de Gênesis
Ligado ao primeiro ponto, muitos usam a “ciência
criacionista” como forma de validar uma interpretação literalista e concordista
de Gênesis. Chamada de “interpretação literal” – que vê os dias de Gênesis como
literais, além das idades dos patriarcas como literais e sem lacunas – ela é
vista como a “verdade bíblica” e o criacionismo de terra jovem é, muitas vezes,
chamado de “criacionismo bíblico” por conta do peso retórico que o termo “bíblico”
acrescenta ao discurso.
Mas mesmo se for provado que o mundo tem
6.000 anos, ainda não se provou que essa interpretação está correta. A
interpretação funcional de John Walton é compatível com uma terra jovem. Walton
diz: “O ponto não é que o texto bíblico, portanto, dê suporte à uma
terra antiga, mas simplesmente que não existe uma posição bíblica sobre a idade
da terra. Se fosse o caso de a terra ser jovem, tanto faz.” [5]
A interpretação alegórica também é
compatível com uma terra jovem. Aliás, até mesmo a interpretação dia-era é
compatível com uma terra jovem! Muitos pais da igreja, por exemplo, acreditavam
que o mundo tinha de 6.000 a 7.000 anos por crerem que os dias não eram
literais, mas sim eras milenares. [6] Ou seja, nem como “aval
hermenêutico” a apologética de terra jovem serve, pois múltiplas interpretações
bíblicas são compatíveis com uma idade recente da criação.[7]
3. Ela não prova a veracidade do relato bíblico.
Suponha que o dilúvio global seja
provado. Por conta dele, a geologia deve pressupor ele para a datação. Certo. A
partir disso, se provou que o mundo é jovem. Muito bem. Ainda assim, não se
provou o relato bíblico. Por que? Porque o dilúvio aparece em outros textos
religiosos antigos, como o épico de Gilgamesh. Ou seja, outros textos sagrados
seriam validados pela geologia diluviana.
4. Ela invalida evidências para argumentos da teologia natural
A ciência de terra jovem, por negar o
Big Bang invalida uma das evidências científicas mais fortes a favor de premissas
chave em argumentos a favor da existência de Deus. No argumento cosmológico kalam,
a premissa 2 do argumento diz que “o universo começou a existir”. Uma das
evidências mais fortes para a verdade dessa premissa é justamente a cosmologia
e a teoria do Big Bang. De fato, quando descoberto, foi reconhecido que o Big
Bang favorecia o teísmo, não o naturalismo. Como diz Christopher Isham:
Talvez o
melhor argumento em favor da tese de que o Big Bang é favorável ao teísmo seja
o óbvio desgosto pelo qual ele é recebido por alguns físicos ateus. Às vezes
isso leva à ideias cientificas [...] que avançam com uma tenacidade que excede
seu valor intrínseco, de modo que só podemos suspeitar que seja uma operação de
forças psicológicas muito mais profundas do que o desejo acadêmico normal de um
teorista em favor de sua teoria.[8]
E Stephen Hawking disse: “Muitos não
gostam da ideia de que o tempo teve um início, provavelmente porque isso cheira
a intervenção divina [...] Por isso, houve uma série de tentativas para evitar
a conclusão de que um Big Bang tenha ocorrido.”[9] Esse desgosto por parte
dos não-teístas mostra que a negação ao Big Bang parte de uma espécie de naturalismo
metodológico, que visa validar apenas explicações que se restringem ao mundo
natural.[10]
Além disso, o Big Bang como evento de
criação fornece uma das evidências mais fortes do ajuste fino do universo, que
é a sua baixa entropia inicial (o universo começou altamente ordenado,
apesar do que dizem por ai[11]). Como diz o cosmólogo
Sean Carroll: “Se o universo que nós vemos realmente é tudo o que existe, com o
Big Bang sendo um início em baixa entropia, então parece que estamos presos em
um desconfortável problema de ajuste fino”.[12]
Conclusão
Em suma, a apologética de terra jovem é,
além de inútil, uma pedra no caminho da teologia natural. Ela não chega à
conclusão alguma a favor do teísmo cristão e enfraquece argumentos a favor
dele. No fim, assim como o terraplanismo, a apologética de terra jovem serve
meramente de instrumento para ridicularizar o cristianismo e dar mal testemunho
frente à população por meio de conspiracionismo e negacionismo.
[1] “Concordismo” é a visão hermenêutica
que tenta fazer o texto bíblico concordar com a ciência moderna. Cf. SODEN,
John. “Concordismo”, In: Dicionário de Cristianismo e Ciência. São
Paulo: Thomas Nelson Brasil, 2018, p. 264. Edição do Kindle.
[2] A geologia do dilúvio (ou geologia
diluviana) é parte importante da “ciência criacionista”. Cf. LOURENÇO, Adauto. Gênesis
1 e 2: a mão de Deus na criação, São José dos Campos, SP: Editora Fiel,
2018, p. 95.
[3] Pessoas como Hugh Ross, John Lennox e
Fuz Rana defendem o design biológico como evidência de um Designer Inteligente.
Cf. LENNOX, John. Cosmic Chemistry: do God and science mix?, 2º
ed., London: Lion Books, 2021.
[4] Michael Behe, por exemplo, que é um dos
maiores defensores do Design Inteligente da atualidade admite que ele crê na
descendência comum dos seres vivos (DISCOVERY SCIENCE, Michael Behe Answers
Hard Questions: What do you think of the idea of common descent?¸ 26 de
Nov. 2019. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=zvS7t-Buwik>;
acesso 28 de Mar. 2023.)
[5] WALTON, John. The lost world of genesis one: ancient
cosmology and the origins debate, Downers Grove: InterVarsity Press, 2009, p.
94.
[6] GORDON, Bruce. Scandal of the
Evangelical Mind: A Biblical and Scientific Critique of Young-Earth
Creationism, Science, Religion and Culture, ISSN 2055-222X, Vol. 1, Nº
3, pp. 144-173, 13 de Out. 2014. Disponível
em <https://researcherslinks.com/current-issues/Scandal-of-the-Evangelical-Mind-A-Biblical-and-Scientific-Critique-of-Young-Earth-Creationism/9/5/43>;
Acesso 09 de Abr. 2021.
[7] Contrário à crença popular, interpretações
não-terra jovem de Gênesis não surgiram para acomodar a ciência moderna ao
relato bíblico. Como dito na nota anterior, os pais da igreja enxergavam os
dias como eras milenares. Agostinho entendia que a humanidade era “jovem”, mas
que a criação em si poderia ser muito antiga (ORTLUNG, Gavin R. Retrieving
Augustine’s doctrine of creation: ancient wisdom for current controversy,
Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 2020, p. 120-121).
[8] Apud. CRAIG, William Lane. “The ultimate question of origins: God
and the beginning of the universe”. Astrophysics
and space, ISSN: 1572-946X, v. 269, p. 728, 1999. Disponível em <https://doi.org/10.1023/A:1017083700096>;
Acesso 16 set. 2020
[9] HAWKING, Stephen. Uma
breve história do tempo,
Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015, p. 65. Edição ePub
[10] ERASMUS, Jacobus. The kalam
cosmological argument: a reassessment, Cham, Switzerland: Springer
International Publishing, 2018, p. 131.
[11] Cf. LOURENÇO, Adauto. Como tudo
começou: Uma introdução ao criacionismo bíblico, São José dos Campos, SP:
Editora Fiel, 2007, p. 91.
[12] CARROLL, Sean. From
Eternity to Here: the quest for the ultimate theory of time, Nova
Iorque: Dutton, 2010, p. 343. Edição
ePub.