domingo, 21 de abril de 2019

Uma fé que não é vã


Através dos séculos, o ser humano tentou encontrar um fundamento para a realidade que ao mesmo tempo em que acabasse com seu anseio também interpretasse o mundo de modo adequado. Friedrich Nietzsche, o filósofo do século XIX que ficou famoso por sua icônica frase, “Deus está morto” acreditava que o homem, vendo-se em um mar de caos e devir começou a criar interpretações de mundo para conseguir suportar esse caos. Para o homem primitivo, essas interpretações tinham a pretensão de serem verdades, mas, no fim, eram apenas mentiras para o conforto do homem.[1]
Uma coisa, contudo, é inegável: o anseio do homem para resistir ao caos do mundo é real. Nietzsche estava correto com isso. Os hebreus respondiam a esse anseio falando sobre como Deus havia colocado a eternidade no coração do homem (Ec. 3.11). Mas a conclusão de Nietzsche de que as ditas “verdades” são meras perspectivas criadas para suportar o devir do mundo não parece estar correta. Afinal, se isso for “verdade”, não seria essa própria ideia uma mera interpretação também? E mais, não é o suficiente chamar uma ideia de falsa apenas apontando uma possível origem para ela, pois isso seria um exemplo de falácia genética.
O apóstolo Paulo, anteriormente conhecido como um dos maiores perseguidores de cristãos da história, disse, após sua conversão, que se Jesus Cristo de fato não ressuscitou dos mortos, então nossa fé é vã (1 Co 15.17). O termo grego mataios tem um sentido de algo que é fútil, falso, sem propósito. É um adjetivo derivado da palavra máten, que significa algo sem fundamento. Em outras palavras, se Jesus não ressuscitou dos mortos factualmente, então a fé cristã não possui fundamento algum. Não é possível ser cristão e dizer que a ressurreição foi apenas um artigo de fé cega originado de um sentimento dos primeiros cristãos. De fato, tal ideia seria incoerente, dado o pano de fundo judaico dos autores do Novo Testamento.
É fato que não haveria conversão alguma entre os primeiros cristãos se eles simplesmente dissessem que Jesus estava presente em seus corações, e isso lhes bastava. Judeus, como Paulo e Tiago, não tinham qualquer motivo para ter um “Jesus no coração”. Paulo perseguia cristãos, e Tiago não acreditava em seu irmão (Jo 7.5; Mc 3.21-35). Esses dois detalhes passam pelo critério de historicidade do constrangimento, pois seria constrangedor inventar que um dos principais líderes do Cristianismo foi um perseguidor daqueles que buscava aconselhar. Suas cartas não seriam dignas de crédito. Além disso, também seria embaraçoso colocar que o irmão do Messias era um incrédulo. Esse é um dos argumentos para demonstrar que as aparições de Jesus realmente ocorreram após a sua morte, servindo de evidência para a crença de Paulo, Tiago e outros discípulos, que estariam desanimados e sem esperança ao ver seu Messias morrendo. O crítico cético do Novo Testamento Hans Grass admite que “a conversão de Tiago é uma das provas mais certas das aparições de Jesus Cristo.” [2]
Essas aparições não são relatadas apenas na Bíblia. Mas os relatos das aparições de Jesus é apontado por Flávio Joséfo, um historiador judeu do primeiro século. Joséfo nos fiz que: “aqueles que haviam sido seus discípulos não deixaram de segui-lo. Eles relataram que ele lhes havia aparecido três dias depois da crucificação e que ele estava vivo”. Para Joséfo, um judeu que não foi convertido ao Cristianismo, a admissão de que pessoas acreditavam ter visto o Cristo ressurreto é algo embaraçoso, principalmente pelo fato dele ser um “inimigo” do Cristianismo.[3]
A ideia de uma ressurreição “espiritual” ou algo motivacional que fez com que os discípulos fossem até a morte não faz sentido no que para a própria perspectiva cultural da época. Dizer que a ressurreição de Jesus foi algo que aconteceu apenas no coração deles é um anacronismo, pois esse conceito não existia na época. Além disso, não convenceria ninguém, já que a tumba foi encontrada vazia. O historiador N. T. Wright, ao final de sua obra de mil páginas a respeito da historicidade da ressurreição de Jesus concluiu que a tumba vazia e as aparições pós-morte de Jesus estão “no mesmo tipo de categoria que a morte de Augusto em 14 d.C. ou a queda de Jerusalém em 70 d.C., isto é, no de uma probabilidade histórica tão alta que é praticamente certa.”[4]
A evidência para a tumba vazia é bem forte. Em primeiro lugar, seria impossível convencer as pessoas que o Messias morto havia ressuscitado se o corpo ainda estivesse lá. Além disso, o fato de mulheres serem as primeiras testemunhas da narrativa torna o fato em mais provável, pois mulheres não eram dignas de crédito para serem testemunhas na época. Se a história fosse inventada, eles teriam colocado os discípulos de grande nome como descobridores da tumba vazia. Por fim, a Inscrição de Nazaré, que é um decreto Imperial de 41 d.C., nos dá evidência de que algumas pessoas da época acreditavam que a tumba havia sido saqueada:

Decreto de César: É meu prazer que tumbas e sepulturas permaneçam perpetuamente imperturbadas por aqueles que as construíram para o culto aos seus ancestrais, aos filhos ou aos membros de sua casa. Se, porém, qualquer um fizer acusação de que outro as destruiu ou que, de alguma maneira, tenha extraído o sepultado, ou o tenha maliciosamente transferido para outro lugar com o objetivo de fazer-lhe mal, ou que tenha substituído o selo por um outro, contra este ordeno que seja constituído um tribunal, tanto com relação aos deuses, como em relação ao culto aos mortais. Pois é muito mais obrigatório honrar os sepultados. Que seja absolutamente proibido a qualquer um perturbá-los. Em caso de violação, desejo que o ofensor seja sentenciado à pena capital ou considerado culpado de violação de sepulcro.

Note que a punição para o saqueamento de uma tumba é a morte. O que é muito além do que os romanos fariam em caso de um roubo. Não haveria motivo algum para o decreto imperial sobre a tumba roubada, se os Judeus estivessem em Roma pregando a ressurreição e a tumba estivesse com o corpo. Mas como então o corpo sumiu? Não podem ter sido os Romanos, pois eles nem ligariam pra isso. Os Judeus muito menos, pois queriam que Jesus fosse esquecido.
Mas e os Cristãos? É improvável, já que eles estavam envergonhados e sem esperança, após ver seu líder morto vergonhosamente. De fato, como Judeus, eles acreditavam que aquele que fosse morte por crucificação estava sob a maldição de Deus (Dt 21.22-23). Além disso, não faria sentido eles roubarem o corpo e depois espalharem a mentira da ressurreição inventada por eles mesmos e estarem dispostos a morrer por isso.
N. T. Wright explica que a crucificação do Messias era, por si só, uma aniquilação da esperança no Messias por parte dos discípulos: “A crucificação de Jesus, entendida do ponto de vista de qualquer observador, simpático a ele ou não, deve ter parecido como a completa destruição de quaisquer pretensões ou possibilidades messiânicas que ele ou seus seguidores possam ter dado a entender.”[5]
Por esses fatos, uma ressurreição meramente motivacional ou espiritual não faz sentido. Também não pode ser dito por parte do cristão que essa é apenas “sua interpretação” do mundo. Para Paulo não era esse o caso. Como diz o estudioso liberal John Dominic Crossan, “Para Paulo [...] a ressurreição corpórea é a única maneira em que a contínua presença de Jesus pode ser expressa”.[6]
O historiador ateu Gerd Ludemann também concorda que “nós não temos razão nenhuma para colocar a interpretação simbólica da ressurreição de Jesus no contexto da crença dos primeiros Cristãos na ressurreição”.[7]
A perseguição e morte dos apóstolos é relatada por Clemente[8], Tácito[9], Flávio Joséfo[10], Inácio, Irineu, Tertuliano e Policarpo, além de diversos apócrifos antigos.[11] E, com isso, uma dúvida inevitável aparece: por que os primeiros cristãos morreriam por uma mentira? O fato simples é que a ressurreição de Cristo não é apenas mais uma interpretação de mundo, baseada em um desejo desesperado do coração humano. O Filho de Deus encarnou, viveu como homem e amou. Por esse amor, ele satisfez a ira do Deus Pai, pagando pelo desejo humano de se afastar de Deus e viver como deus. Na história da redenção, nós vemos algo quase paradoxal: o fato de que podemos ter esperança no futuro com Deus, ao mesmo tempo em que o homem, ansiando por esse futuro, não quer aquele que é o responsável por ele.
O homem, achando-se deus, criou diversas interpretações de mundo para tentar satisfazer o anseio por um conforto no caos do mundo, sem saber que o único que pode satisfazer esse anseio é o verdadeiro Deus que criou o homem. Esse é o pecado fundamental do homem. E o Deus que criou o homem que pensou que havia criado Deus pagou por ele. Por isso, Cristo o convida, de braços abertos, a voltar a Deus.

No final, nós vemos que Jesus de Nazaré é o cumprimento histórico dos mais genuínos ideais e anseios humanos, os quais são encontrados através das religiões, dos contos de fadas, dos épicos e das lendas do mundo. [...] Em Cristo, Deus aperfeiçoa e preenche as maiores esperanças e aspirações supremas em todas as culturas, filosofias e religiões.[12]

Por isso, a fé cristã encontra-se longe de uma fé vã. A fé cristã apoia-se em fatos. Não há fideísmo. O Cristo que fala ao meu coração, fala à minha razão também. Ele preenche os anseios do mundo, em todas as áreas, por uma escolha. É um Deus que poderia se manter longe, mas, por amor, se revelou. Cristo não é uma interpretação, Ele é o Deus encarnado, que revelou o que o mundo é para uma humanidade perdida e sem direção.



[1] CILENTO, Angela Zamora. “A metafísica de artista enquanto concepção estética do mundo”, Revista Primus Vitam, São Paulo, Nº 4, 2012, p. 1
[2] Apud. CRAIG, William Lane. Apologética Contemporânea: a veracidade da fé cristã, São Paulo: Vida Nova, 2012, p. 363
[3] Joséfo não foi um inimigo no sentido de se opor ao Cristianismo. Mas ele, como judeu, não era apoiador da fé cristã. Por isso, esse fato teria todos os motivos para ser omitido por ele.
[4] WRIGHT, N. T. A Ressurreição do Filho de Deus, São Paulo: Paulus, 2013, p. 975
[5] Ibid., p. 769
[6] Apud, LICONA, Michael;  HABERMAS, Gary. The Case for the Ressurrection of Jesus, Grand Rapids, MI: Kregel Publications, 2004, Locais do Kindle 1660-1661. Edição Kindle
[7] Citado em Inspiring Philosophy, 6. The Resurrection of Jesus (Spiritual Resurrection?), 2016, 15:11, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=rffmrioFnBY acesso 21/04/2019
[8] 1 Clemente 6:1
[9] Sean McDowell, The Fate of the apostles: Examining the Martyrdom Accounts of the Closest
Followers of Jesus, Londres: Routledge, 2016, p. 104
[10] Antiguidades 20:197:203
[11] Sean McDowell, The Fate of the apostles: Examining the Martyrdom Accounts of the Closest
Followers of Jesus, Londres: Routledge, 2016.
[12] COPAN, Paul. True for You, But Not for Me. Grand Rapids, MI: Baker Publishing Group, p. 118. Edição do Kindle.

sábado, 6 de abril de 2019

Estaria o Criacionismo de Terra Jovem se tornando uma Seita?


Talvez surpreenda o leitor saber que um grupo sectário não é apenas aquele grupo que se diz uma “denominação cristã”, mas também pode ser um grupo interdenominacional que aceita uma doutrina específica e a trata do mesmo modo que os grupos sectários tratam seus dogmas. Um exemplo bastante claro disso é o movimento dos King James Onlyists, que creem que apenas a King James seja uma tradução válida. De fato, pessoas como Steven Anderson e Kent Hovind, por exemplo, dizem que a King James é a tradução que foi divinamente inspirada por Deus! Esse movimento circula dentro de diversas denominações fora do Brasil, e é classificado como uma seita.
Uma das características principais de um movimento sectário é o aparecimento de um “guru” que dita as regras doutrinárias. Geralmente, dizem que tiveram contatos com algum anjo e que receberam visões. Mas esses líderes e falsos profetas acompanham seus grupos sectários não apenas com falsa informação, mas também com medo. Em outras palavras, se você abandonar esses grupos (ou ao menos suas doutrinas), você perderá a salvação de Cristo.
Steven Anderson, em seu debate com o Dr. James White, disse: “Se uma pessoa estiver lendo a Bíblia King James e ela disser: ‘eu não consigo entender isso’, e depois ela lê a NVI e a ama, então eu questiono: por que ela não ouviu a voz do pastor? Por que ela prefere a mentira à verdade?”[1]
Na seita das Testemunhas de Jeová (ou Sociedade Torre de Vigia), não apenas colocam o medo da perda da Salvação nos membros caso saem, mas também se recomenda que tratem mal os que saíram:

Aqueles que um dia serviram como Testemunhas de Jeová rejeitaram varias visões da Escritura baseadas nos ensinamentos de Jesus Cristo e seus apóstolos. [...] eles não possuem mais comunhão com as leais testemunhas de Jeová ungidas e seus companheiros, e, portanto, esses egoístas hereges não possuem “participação” com o Pai e o Filho, não importa o quanto eles se gabem de ter intimidade com Deus e com Cristo. Em vez disso, eles estão em escuridão espiritual. Os amantes da luz e da verdade devem tomar uma posição firme contra esses promotores do ensino falso. De modo algum, as testemunhas leais de Jeová querem ser cúmplices nos “atos iníquos” de tais pessoas infiéis, apoiando suas palavras e atividades ímpias de qualquer maneira.[2]

Essa não é uma exclusividade das Testemunhas de Jeová. Ellen White, por exemplo, colocou uma grande carga nos ombros de seus seguidores quando disse:

Foi-me mostrada então uma multidão que ululava em agonia. Em suas vestes estava escrito em grandes letras: “Pesado foste na balança, e foste achado em falta.” Perguntei quem era aquela multidão. O anjo disse: “Estes são os que já guardaram o sábado e o abandonaram.” [3]

Ou seja, quem para de guardar o sábado, segundo Ellen White, sofrerá no fim dos tempos. Em outro lugar, Ellen White disse que “Satanás tomou controle das igrejas [Católicas e Protestantes] como um corpo.”[4] Em outras palavras, se você sair da Igreja Adventista, você está no controle da Satanás. Isso se torna evidente no fato da Igreja Adventista possuir um livro chamado Estudando Juntos, que é totalmente dedicado à evangelização de membros de outras denominações cristãs.[5]
Não é surpresa, porém, que os líderes do Criacionismo de Terra Jovem façam a mesma coisa que os líderes de grupos sectários. Ambos usam as mesmas táticas:

1.    Convencem seus seguidores de que todos os outros estão errados.
2.    Manipulam a Palavra de Deus e mudam o que a Bíblia realmente diz.
3.    Colocam um pouco de verdade para que as mentiras sejam criveis.
4.    Ensinamentos diferentes são uma ameaça para o Cristianismo.
5.    Alertam seus membros a nunca ouvirem outras doutrinas ou eles estarão perdidos.

Podemos claramente ver que pelo menos quatro dessas táticas são cumpridas pelos CTJ. Vejamos 5, que é o mais chocante, primeiro. Ken Ham, o líder do maior grupo de Criacionismo de Terra Jovem atualmente, o Answers in Genesis, diz o seguinte sobre a crença na idade da criação e na salvação:

Quando morreu na cruz e foi ressuscitado dos mortos, Jesus venceu a morte e pagou a penalidade dos pecados. Apesar de milhões de anos de morte antes do pecado não ter relação com a salvação, eu pessoalmente creio que é um ataque à obra de Jesus na cruz.[6]

Isso se deve ao fato da maioria dos criacionistas de terra antiga crer que havia morte antes do pecado original. Como veremos, não há absolutamente nenhum texto bíblico que diga que não havia morte de animais, animais carnívoros ou até mesmo doenças antes do pecado original.
Ken Ham também faz alegações drásticas em diversos lugares, clamando que “o deus de uma terra antiga destrói o evangelho”, e “o deus de uma terra antiga não pode ser o Deus da Bíblia, que é capaz de nos salvar do pecado e da morte”[7] No mesmo livro que Ham diz essas coisas, ele da a entender que os Criacionistas de Terra Antiga não adoram o Deus da Bíblia, sendo assim idólatras. Ele diz: “Os cristãos que acreditam em uma Terra antiga (de bilhões de anos) precisam começar a entender a verdadeira natureza do deus de uma Terra antiga – ele não é o Deus amoroso da Bíblia.” [8]
Falando sobre os cientistas que creem em uma terra jovem, Todd Friel diz que

a verdadeira razão deles saberem que a terra é jovem é que o Espírito Santo os ensinou a verdade. [...] Sim, os cientistas criacionistas são inteligentes, mas existem outros homens e mulheres que são inteligentes e creem que a terra é velha ou evolui por si mesmo. A verdadeira diferença entre um criacionista de terra jovem e pessoas como Stephen Hawking e Neil deGrasse Tyson é o Espírito Santo.[9]

Em outras palavras, não só o ateu (como Hawking e Tyson) não possui o Espírito Santo, mas também os cristãos que creem em uma terra antiga não receberam essa informação que supostamente é muito importante.
Seguindo a mesma linha de pensamento, Christopher Johnson, outro Criacionista de Terra Jovem, disse:

Pode alguém ter fé em Jesus Cristo e não crer nele ao mesmo tempo? Eu quero crer que os caras da terra antiga são Cristãos nascidos de novo, mas eu não posso porque a Bíblia nos diz que eles não creem em Jesus Cristo. [...] existem novos Cristãos que podem ainda crer na evolução, e isso é perfeitamente aceitável, porque eles vão aprender sobre Deus com o tempo, porém, assim que eles atingirem certo ponto em seus estudos, se eles ainda negarem certas doutrinas básicas ensinando bilhões de anos, nós poderemos ver que temos uma falsa conversão em nossas mãos. [10]

Além da falsa equivalência presente entre o termo “evolução” e “bilhões de anos” (pois os bilhões de anos não implicam uma evolução biológica), nota-se, aqui, uma tática muito parecida com o medo colocado na mente das pessoas em grupos sectários. “Se você não aceitar minha interpretação, você perderá a salvação!” Nem ocorre pela cabeça de Johnson, que um crente pode ler a Bíblia e chegar à conclusão de que ela não ensina o Criacionismo de Terra Jovem apenas por exegese de texto. E mais: Ele não tem capacidade intelectual o bastante para colocar a própria crença em dúvida.
Há, neste tópico, também uma característica presente em muitas seitas: se você abandonar essas crenças, então futuramente você se tornará um ateu. Muitos CTJ fazem essa ameaça. Eles partem da ideia errada de que Criacionistas de Terra Antiga não creem em Gênesis 1-3 para enganar seus seguidores e dizer que se não acreditam em uma parte, eles estão mais propensos a não acreditar no resto da Bíblia. Russell Grigg, do Creation Ministries International, por exemplo, diz o seguinte:

Vamos examinar alguns problemas que ocorrem quando um Cristão não aceita o que Gênesis fala sobre uma Criação literal. 1. Há um escorregão para a incredulidade que acompanha a falta de crença em qualquer parte da Palavra de Deus. Se alguma parte da Bíblia não é verdade porque ela não significa o que quer dizer, como sabemos que outras partes, como a Concepção Virginal de Jesus ou o perdão dos pecados, são verdadeiros?[11]

É claro que essa ameaça não faz sentido algum. Em primeiro lugar, Criacionistas de Terra Antiga creem em toda a Bíblia e em sua inspiração divina. Segundo, até mesmo Teístas Evolucionistas, que geralmente creem que Gênesis 1-3 é alegórico, não vão dizer que por causa de uma parte todo o resto é alegórico. Quando eles dizem que essa parte da Bíblia é uma alegoria, eles fazem por razões exegéticas relacionadas a esses capítulos de Gênesis. Não é arbitrário. Se a exegese deles está correta ou não, aí é outra história. Por hora, dizer que eles vão tratar tudo como alegoria só porque tratam uma parte é cometer a falácia do declive escorregadio: não é porque se crê em A que logo se crerá em Z. Além disso, seria como dizer que, um dia, aqueles que interpretam o dragão de sete cabeças de Apocalipse como uma metáfora tratarão toda a Bíblia como metáfora.
Não é difícil ver CTJ chamando os cristãos da Terra Antiga de “comprometedores” e fazendo falsas acusações de que colocamos as “tradições dos homens acima da Bíblia”. Em outras palavras: o Criacionista de Terra Jovem faz a acusação de que se você não concordar com a interpretação dele, você está comprometendo a veracidade da Bíblia. Para isso, eles fazem todo um jogo de linguagem dizendo que não concordamos com a Bíblia ao invés da interpretação deles. O que, é claro, é uma mentira.
Henry Morris, um dos maiores nomes do movimento da Terra Jovem, fala sobre os Criacionistas de Terra Antiga: “Quase que inevitavelmente [...] esses compromissos terminaram em completa apostasia da parte desses comprometedores.”[12]
A tática de número 4 (“Ensinamentos diferentes são uma ameaça para o Cristianismo”) também é bem evidente. Grigg torna isso claro:

Hoje, Gênesis está sendo atacado como nunca antes – não apenas de céticos que o ridicularizam, mas também por professores “Cristãos” que, em seus livros e sermões, deturpam descaradamente o que o texto diz, para fazer com que ele se conforme com a ciência moderna e suas pressuposições anti-teístas.[13]

É fácil perceber a tática número 3 também. Falando sobre algo do meio cristão, os CTJ sempre falam da Salvação apenas pela fé, da divindade de Jesus Cristo, da doutrina da Trindade, etc. Mas junto a isso eles aproveitam a aparência de “essenciais da fé” para propagar suas doutrinas secundárias sem importância como se fosse parte dos essenciais da fé. 
Quanto a 1, vemos essa tática também sendo cumprida. Eu perdi a conta de quantas vezes já encontrei CTJ com toda a certeza de que eu estava errado. Eles nunca abriam a mente para ouvir o outro lado. Me lembro de passar um estudo sobre o Criacionismo em um Pequeno Grupo de minha igreja no qual uma das ouvintes se negou a ouvir uma só palavra do que eu dizia. Durante o estudo todo, ela, apesar de ser uma grande amiga minha, ficou conversando com outra mulher e dizendo por que achava que eu estava errado. Em outra ocasião, quando expus minha interpretação de Gênesis à um membro da minha antiga igreja, ele perguntou se eu era ateu! Ainda em outro caso, certa vez um cara me perguntou quantos anos eu achava que a terra tinha. Eu disse que a Bíblia não falava sobre isso e PORTANTO eu poderia crer em qualquer coisa que a ciência dissesse. Mas ele, com a lavagem cerebral dos terrajovistas, simplesmente disse “meu critério é a Bíblia, se contradiz eu não aceito!”, dando a entender que qualquer coisa que não fosse de terra jovem iria contradizer a Bíblia.
Mas essas não são as únicas características de uma seita. Você notará que os Criacionistas de Terra Jovem são bastante ineficientes em suas atividades de evangelização, e o mesmo acontece nas seitas. Mas aqui vai uma grande similaridade entre esses dois grupos: Ambos crescem por causa de relações familiares. Membros de seitas recebem material educacional para crianças, e Criacionistas de Terra Jovem fazem o mesmo. Se não fosse assim, nenhum dos dois grupos sobreviveria.
Mas ainda há mais. A International Cultic Studies Association [Associação de Estudos Sectários Internacional] listou várias características presentes em seitas.[14] Algumas delas são:

1.        O grupo é extremamente zeloso e não questiona seu líder (Ken Ham, Kent Hovind, Jason Lisle não são questionados por seus seguidores.)
2.        Não há encorajamento com relação ao questionamento e à dúvida.
3.        O grupo clama estar em um status exaltado.
4.        O grupo criou uma mentalidade de “nós-versus-eles”.
5.        Os lideres induzem sentimentos de vergonha e culpa para influenciar e controlar seus membros.

Concordando com esse último ponto, a página anti-seitas How Cults Work [Como as Seitas Trabalham] caracteriza os líderes de seitas da seguinte forma:

Os líderes de seitas precisam fazer você crer que não há outro lugar que você encontrará a salvação, e se você sair a “única igreja verdadeira”, então você estará indo para o inferno. Isso é um mecanismo de controle baseado no medo projetado para te manter na seita. Ele também da aos líderes de seitas um tremendo poder sobre você. Se você realmente crê que deixar o grupo significa deixar Deus [...], então você vai obedecer os líderes de sentas mesmo quando você discorda do que eles falam ao invés de arriscar sair do grupo. O exclusivismo é usado como uma ameaça, e controla seu comportamento através do medo. [15]

Essas são exatamente as características que vemos nos ministérios defensores do Criacionismo de Terra Jovem. Como vimos, os líderes de Terra Jovem ameaçam, colocam medo, geram briga e ofendem aqueles que discordam deles.
O ponto número 2 também é de extrema importância. As pessoas se acostumam a crer em coisas sem investigar. As pessoas creem em líderes da Teologia da Prosperidade, creem em charlatões da internet, etc. O mesmo acontece com o Criacionismo da Terra Jovem. É uma crença comum, passada por uma “Tradição Protestante”, que parece óbvia. Parecendo óbvia, ninguém investiga. E justamente esses que não investigam fazem acusações caluniadoras e ofensivas sem ao menos ler o que o outro lado fala. Os criacionistas de terra antiga, são acusados de “comprometer as Escrituras”, de “colocar a ciência acima da Bíblia”, de “não crer em Jesus Cristo”, de “não crer na inerrância da Bíblia”, etc. É claro que essas acusações são tão erradas quanto as de quem diz que 2+2=3.749.
Um criacionista de terra antiga não “reinterpreta” a Bíblia e nem a compromete. Nós cremos na inerrância da Palavra de Deus acima de tudo. Não colocamos a ciência acima da Bíblia, muito pelo contrário, cremos que pela Bíblia sabemos a Verdade e a ciência confirma a Bíblia, pois o próprio Apóstolo Paulo disse que “desde a criação do mundo os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas criadas.” (Romanos 1:20 NVI)
Além disso, são os Criacionistas de Terra Jovem que inventam regras de hebraico e leem coisas no texto que não estão lá, apenas para salvar sua interpretação exegeticamente incorreta. Em certo ponto, os CTJ defendem algumas de suas posições tentando forçar sua “ciência criacionista” no texto apenas para salvar sua interpretação.
Portanto, vemos um trajeto não evidente do Criacionismo de Terra Jovem, indo de uma doutrina extremamente secundária para uma doutrina de extrema importância, sendo colocada lado a lado com doutrinas de salvação. A mente fechada, o medo e a necessidade absoluta de um líder que coloca essas coisas na cabeça de seus seguidores, fazem do Criacionismo de Terra Jovem, como um movimento moderno que sem dúvida nenhuma é sectário. O grande problema não é ser um Criacionista de Terra Jovem. O problema é tratar os que interpretam de modo diferente como se estivessem adulterando a Palavra de Deus, usando espantalhos e colocando medo nas pessoas. Isso é uma seita. Sem sombra de dúvidas.



* Esse texto é parte do livro A Gênese em Gênesis: solucionando a controvérsia das eras, 2ª Ed., São Paulo: Ed. do Autor, 2019, p. 25-36. Há alterações no conteúdo.
[1] Framing the World, Dr. James White Full Interview ‘NWO Bible Version’, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=xJrptikLjq8 acesso 05/04/2019
[2] Pastor Russell, Beware of the Apostates, disponível em http://pastorrussell.blogspot.com.br/2009/03/beware-of-apostates.html; acesso em 13/04/2018
[3] Ellen White, Primeiros Escritos, p. 37 (itálico meu)
[4] Ellen White, 1 Spiritual Gifts, 2010, p. 189; disponível em Centro White http://www.centrowhite.org.br/files/ebooks/egw‑english/books/Spiritual%20Gifts,%20vol.%201.pdf ; acesso 13/04/2018
[5] Eu não acredito que todo adventista é membro de uma seita, mas com toda certeza o adventismo de Ellen White é sectário.
[6] Answers in Genesis, Does the Gospel Depend on a Young Earth?, disponível em https://answersingenesis.org/creationism/young-earth/does-the-gospel-depend-on-a-young-earth/; acesso 18/04/2018 (itálico meu)
[7] Ken Ham, Criacionismo – Verdade ou Mito?, Rio de Janeiro: CPAD, 2011, p. 41.
[8] Ibid., p. 40.
[9] Answers in Genesis, How do I Stay Humble When I know I’m right?, disponível em https://answersingenesis.org/logic/how-do-i-stay-humble-when-i-know-im-right/ acesso 05/04/2019
[10] Creation Liberty, The Earth’s Age Affects Salvation Doctrinehttp://www.creationliberty.com/articles/ageisdoctrine.php disponível em ; acesso 18/04/2018
[11] Creation Ministries International, Do I have to believe in a literal creation to be a Christian?, disponível em https://creation.com/do-i-have-to-believe-in-a-literal-creation-to-be-a-christian acesso 13/04/2018
[12] Institute for Creation Research, Recent Creation Is a Vital Doctrine, disponível em http://www.icr.org/article/237/; acesso 14/04/2018
[13] Ibid.
[14] The International Cultic Studies Association, Check-list, disponível em https://www.icsahome.com/articles/characteristics ; acesso 13/04/2018 [Link atualizado em 22/07/2022]
[15] How Cults Work, disponível em http://www.howcultswork.com/; acesso 13/04/2018