As evidências a favor da
não-literalidade dos dias em Gênesis 1 foram apresentadas. Ainda assim, porém,
precisamos lidar com certas objeções. Existem três objeções que normalmente são
apresentadas: primeiro, apelam para Êxodo 20 para dizer que os dias tem que ser
seis dias literais; segundo, se aponta a formula “tarde e manhã” para indicar
que o texto está falando de dias literais; e terceiro, se diz que sempre que a
palavra yom está sendo usada com um
número ordinal ou cardinal, ele se refere a um dia literal. Vejamos primeiro o
texto de Êxodo 20:
Lembra-te
do dia do sábado, para o santificar.
Seis dias
trabalharás, e farás toda a tua obra.
Mas o
sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus; não farás nenhuma obra, nem tu, nem
teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal,
nem o teu estrangeiro, que está dentro das tuas portas.
Porque em
seis dias fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo que neles há, e ao
sétimo dia descansou; portanto abençoou o Senhor o dia do sábado, e o
santificou.
Êxodo
20:8-11
Esse argumento não é tão forte quanto as
pessoas que o usam acham. Em primeiro lugar, a palavra yom tem uma gama de sentidos literais, podendo ser traduzida por
“dia”, período da luz do dia e longos tempos. Isso explica porque o autor
escolheu a palavra yom e não outra,
pois Gênesis 1 apresenta dias literais e não-literais, assim englobando ambos
os sentidos e mantendo a estrutura poética do texto. Mas, em segundo lugar, a
própria palavra shabbath, traduzida
por “sábado”, não se restringe a um período de 24 horas. Em Levítico 25.3-4, a
palavra shabbath é usada para se
referir a um ano de descanso da terra.
Com a palavra yom e a palavra shabbath
permitindo múltiplas durações, podemos apontar que o texto de Êxodo não diz
absolutamente nada quanto à duração
desses dias, mas fala apenas do padrão
de seis em um. Como William Lane Craig bem colocou:
Os
criacionistas literais vão dizer que isso [Êxodo 20] mostra que Gênesis 1 está,
de fato, intencionado a se referir a uma semana literal de seis dias
consecutivos de 24 horas. Mas eu acredito que isso seja pressionar a passagem
demais. O que a passagem de Êxodo está nos mostrando é o padrão que é colocado
em Gênesis 1 – o padrão de Deus trabalhando em seis dias criativos e então
descansando no sétimo dia. Esse padrão é o mesmo que Israel deveria observar em
sua semana de trabalho literal. Mas isso não quer dizer que, já que o padrão é
o mesmo, então os períodos de duração descritos em Gênesis também têm,
portanto, a exata mesma duração que nossos dias normais do calendário.[1]
Com referência ao quarto mandamento,
Gleason Archer também diz:
De
maneira nenhuma isso [Êxodo 20:8-11] demonstra que intervalos de 24 horas
estavam envolvidos nos primeiros seis dias, assim como a celebração de oito
dias da Festa dos Tabernáculos não prova que as peregrinações no deserto sob
Moisés ocuparam apenas oito dias.[2]
Portanto, vemos que o texto de Êxodo 20.8-11
não serve como uma evidência forte a favor do Criacionismo de Terra Jovem. É um
texto que apenas aponta o padrão de trabalho e descanso de Israel.
A formula “tarde e manhã” também não
implica em uma interpretação literal dos dias. No Salmo 90, escrito por Moisés,
utiliza as palavras “tarde” e “manhã” como metáforas para o fim e início de um
longo período. Ao mesmo tempo, a palavra yom
é apresentada no texto como uma referência a um “dia” de Deus, que equivale a
“mil anos”:
SENHOR,
tu tens sido o nosso refúgio, de geração em geração.
Antes que
os montes nascessem, ou que tu formasses a terra e o mundo, mesmo de eternidade
a eternidade, tu és Deus.
Tu
reduzes o homem à destruição; e dizes: Tornai-vos, filhos dos homens.
Porque mil
anos são aos teus olhos como o dia de ontem que passou, e como a vigília da
noite.
Tu os
levas como uma corrente de água; são como um sono; de manhã são como a
erva que cresce.
De madrugada
floresce e cresce; à tarde corta-se e seca.
Salmos
90:1-6
O texto fala de como Deus transcende
tempo e nós somos limitados por ele. Mas mostra que, linguisticamente, não
existe restrição a dizer que “tarde” e “manhã” indicam o fim e o início de um
longo período.
Há mais uma coisa que deve ser dita com
relação a esse argumento: o sétimo dia não possui “tarde e manhã”. Junto ao
fato de que o Salmo 95 diz que o descanso de Deus não acabou (95.11), podemos
concluir que o sétimo dia não acabou na semana de criação. Ademais, em Hebreus
3-4 nós temos esse texto citado, onde o autor diz que Deus instituiu um novo
dia, chamado Hoje (4.7), o qual é um período de tempo indeterminado (3.13).
Assim, concluímos que: ou o sétimo dia continua até hoje, ou esse “hoje” é um
novo dia, no qual estamos, que teve início com a obra de Cristo.
Independentemente disso, temos uma evidência de que os dias de Gênesis não são
literais a partir do Novo Testamento.
A última objeção é, de fato, a mais
fraca. A alegação de que a palavra yom
com um número sempre indica um período de 24 horas é falsa, pois não existe
nenhuma regra gramatical no hebraico que exija isso. De fato, existem textos
que usam yom com um numeral e não
significa um período de 24 horas (ex.: Oséias 6.2; Zacarias 14.7). Essa “regra”
foi simplesmente inventada por Criacionistas de Terra Jovem apenas para dar
suporte à sua interpretação falha.[3]
Concluímos essa série de três posts
sobre os dias de Gênesis com uma recapitulação. O primeiro dia provavelmente é
literal; o segundo dia não da pra saber; o terceiro com toda certeza não é; o
quarto dia talvez não seja; o quinto dia não há como saber; e o sexto com toda
certeza também não é. Confuso? Nem tanto. Deus não quis revelar a duração de
todos os dias de criação, mas nos mostrou que foi ele que criou, deu ordem e
função a todas as coisas. Vimos, por fim, que os argumentos a favor da
literalidade dos dias são, de fato, fracos, e exigem que adicionemos muitas
coisas que não estão no texto bíblico (ex.: Deus acelerando o processo no
terceiro dia; Adão com superpoderes, etc.). Assim, estamos justificados em
dizer que os dias de Gênesis não são todos literais, e que a crença em uma
terra antiga não está impedida pela narrativa de criação. O cristão pode se
sentir confortável em crer que Deus criou um mundo antigo, com milhões ou
bilhões de anos, pois a Palavra não especifica nenhuma idade para o mundo.
[1]
Reasonable Faith, Excursus on Creation
of Life and Biological Diversity (Part 3): A Critique of the Literal
Interpretation, 2019, disponível em https://www.reasonablefaith.org/podcasts/defenders-podcast-series-3/excursus-on-creation-of-life-and-biological-diversity/excursus-on-creation-of-life-and-biological-diversity-part-3/;
acesso 06/06/2019
[2] Apud. Hugh Ross, A Matter of Days: resolving a Creation
Controversy, 2ª Ed., Colorado Springs, CO: NavPress, 2015, p. 97. Edição
ePub
[3] Norman
Geisler, Enciclopédia de apologética:
Repostas aos críticos da fé cristã, Vida, 2002, p. 371
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ResponderExcluirNão tem a ver com esse post, mas vou escrever, assim, mesmo.
ResponderExcluirOlha, Felipe, gosto muito do seu blog. Em uma época, ele me ajudou muito, como continua ajudando. Só tenho a agradecer e louvar a Deus por ter um servo tão inteligente e dedicado a defender o que crê, com argumentos bem fundamentados.
Mesmo que um dia você não poste mais, o legado do seu blog já é imenso, pelo menos para mim. Obrigada, Senhor! E obrigada, Felipe!
Obrigado pelas palavras, de verdade. A faculdade tem deixado muito difícil de escrever algo apenas para o blog, mas de vez em quando eu tento postar.
ExcluirQue Deus te abençoe.