Baseado no que vimos até aqui, percebemos
que a questão não é “qual é a tradução correta da palavra yom?” A questão que enfrentamos é se a palavra “dia” é literal ou não. Certamente a tradução correta
é “dia”, e o uso da formula “tarde e manhã” parece indicar isso. Porém, até
mesmo essa formula não restringe os dias períodos de 24 horas.[1] Agora devemos avaliar o
que nos é dito no quarto dia:
E disse
Deus: Haja luminares na expansão dos céus, para haver separação entre o dia e a
noite; e sejam eles para sinais e para tempos determinados e para dias e anos.
E sejam
para luminares na expansão dos céus, para iluminar a terra; e assim foi.
E fez
Deus os dois grandes luminares: o luminar maior para governar o dia, e o
luminar menor para governar a noite; e fez as estrelas.
E Deus os
pôs na expansão dos céus para iluminar a terra,
E para
governar o dia e a noite, e para fazer separação entre a luz e as trevas; e viu
Deus que era bom.
E foi a
tarde e a manhã, o dia quarto.
Gênesis
1:14-19
Aqui temos um dos grandes desafios ao se
interpretar Gênesis 1, e isso se deve a uma série de fatores. Em primeiro
lugar, se formos ler como um relato estritamente literal, então temos que dizer
que a lua é um luminar, ou seja, ela emite luz. Em segundo lugar, se interpretarmos
também que o sol, a lua e as estrelas foram criadas nesse dia, com a própria
função de marcar os dias, como pode ter havido três dias antes deste? E em
terceiro lugar, a função do sol e da lua é a de separar a luz e as trevas, mas
no primeiro dia nos é dito que o próprio Deus fez essa separação. Como, então,
solucionar esses problemas?
O primeiro problema é facilmente
resolvido ao entender duas coisas: primeiro, como dito antes, nem tudo nesses
três primeiros capítulos deve ser lido de modo literal; segundo, temos que entendermos
que, no Antigo Oriente Médio, “luz” não era algo físico[2].
O segundo problema só é um problema de
verdade se descartarmos a ideia de que há uma proposta funcional nesse texto.
Deus claramente está dando a função ao sol e à lua de marcar dias, estações e
anos. Assim, devemos entender que o texto está nos dizendo apenas isso: o sol,
a lua e as estrelas já existiam, mas agora eles possuam função de marcar os
dias, as estações (relacionadas às festividades judaicas) e anos.
Há dois indicativos de que isso está
acontecendo no texto, além do que está óbvio para nós: primeiro, o texto começa
com “haja”, uma palavra que aparece nos dias um e dois para indicar que algo
irá aparecer e logo depois lhe será dada uma função (1.3, 6). Segundo, a
palavra hebraica traduzida por “fez” em 1.16 pode facilmente ser traduzida por
“preparou” e ainda ser uma tradução literal[3]. A tradução para
“preparou” está mais de acordo com o contexto e com o que o autor quer
transmitir nele: Deus está preparando o mundo para que ele seja produtivo.
Talvez exista um fator nesse texto que
indique a sua não-literalidade. Mas para mostrar isso, devemos ir ao dia 1: “E
disse Deus: Haja luz; e houve luz”. A importância desse texto está nas palavras
hebraicas utilizadas e na ordem em que elas são utilizadas. Em hebraico, nós
lemos יְהִ֣י א֑וֹר וַֽיְהִי־ אֽוֹר (yehî
‘or wayhî ‘or). É importante perceber que Deus ordena que apareça o período
de 12 horas da luz do dia e depois dessas 12 horas ele diz que houve luz (wayhî ‘or). Essa palavra hebraica wayhî indica uma mudança de referencial de tempo. Note que essa
palavra começa com a conjunção vav,
que indica uma continuidade na história. Porém, a palavra wayhî parece indicar uma sequência com um novo referencial de tempo
(isso ocorre, por exemplo, em Jó 1.6; 13; 2.1; 1 Samuel 14.1; Gênesis 26.1;
Rute 1.1).[4] Assim, se nós tempos um
novo referencial de tempo, e se quando ela é usada após um comando ela indica
que o comando foi finalizado, o que podemos dizer do seguinte texto do quarto
dia:
E disse Deus: Haja luminares na expansão dos céus, para
haver separação entre o dia e a noite; e sejam eles para sinais e para
tempos determinados e para dias e anos.
E sejam para luminares na expansão dos céus, para iluminar
a terra; e assim foi [wayhî ken].
Gênesis 1:14,15
O uso da palavra wayhî após Deus dar a função do sol e da lua marcarem os dias,
tempos determinados e anos parece indicar que antes do quarto dia acabar, tudo
isso foi realizado. Portanto, há um bom argumento aqui para a não-literalidade
do quarto dia, fazendo dele um período muito mais longo do que o de 24 horas.
Por fim, o terceiro problema parece ser
o mais difícil, se nós nos propusermos a ficar apenas com as ideias que o texto
mostra. A sugestão de que Deus fazia a função de separar dia e noite até aqui
parece ser forçar algo que o texto não diz. Ao mesmo tempo, dizer que o próprio
Deus era a luz, pois em João ele é chamado de luz do mundo parece não entender
o sentido de “luz” em João. Ainda mais, outros propõem que Deus era a luz, pois
em Apocalipse diz que ele será a nossa fonte de luz. Entretanto, Gênesis não
faz essa ligação, e não parece correto fazer essa ligação entre “novos céus e
nova terra” e os nossos “céus e terra”.[5]
Já que esse problema não diz respeito
diretamente à literalidade dos dias de Gênesis, podemos ir ao quinto dia, onde
aparecem os animais marinhos:
E disse
Deus: Produzam as águas abundantemente répteis de alma vivente; e voem as aves
sobre a face da expansão dos céus.
E Deus
criou as grandes baleias, e todo o réptil de alma vivente que as águas
abundantemente produziram conforme as suas espécies; e toda a ave de asas
conforme a sua espécie; e viu Deus que era bom.
E Deus os
abençoou, dizendo: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei as águas nos mares; e
as aves se multipliquem na terra.
E foi a
tarde e a manhã, o dia quinto.
Gênesis
1:20-23
O relato do quinto dia pode ser
entendido como um período de 24 horas ou não. Nada no texto parece fazer
preferência a uma interpretação ou outra. Entretanto, há algumas coisas
importantes a serem percebidas aqui: primeiro, o texto começa com Deus dando
uma função às águas de produzir os répteis de alma vivente. No versículo
seguinte, porém, o texto diz que Deus os criou. Há, aqui, portanto, uma
contradição? Não, não há, mas nossas mentes ocidentais do século XXI tentam a
impor conceitos no texto que não estão lá. A palavra hebraica bara, que é traduzida por “criar” não
significa “criar a partir do nada” e também não significa, necessariamente, criação material.[6] Assim, podemos entender
que o quinto dia também possui uma orientação de criação funcional.
O sexto dia é um dos mais importantes
para a nossa análise:
E disse
Deus: Produza a terra alma vivente conforme a sua espécie; gado, e répteis e
feras da terra conforme a sua espécie; e assim foi.
E fez
Deus as feras da terra conforme a sua espécie, e o gado conforme a sua espécie,
e todo o réptil da terra conforme a sua espécie; e viu Deus que era bom.
E disse
Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine
sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda
a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.
E criou
Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.
E Deus os
abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e
sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre
todo o animal que se move sobre a terra.
E disse
Deus: Eis que vos tenho dado toda a erva que dê semente, que está sobre a face
de toda a terra; e toda a árvore, em que há fruto que dê semente, ser-vos-á
para mantimento.
E a todo
o animal da terra, e a toda a ave dos céus, e a todo o réptil da terra, em que
há alma vivente, toda a erva verde será para mantimento; e assim foi.
E viu
Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom; e foi a tarde e a manhã,
o dia sexto.
Gênesis
1:24-31
O texto de Gênesis 2.4-25 temos uma
recapitulação do que ocorreu no sexto dia de Gênesis 1. Esse texto é um grande
problema para os que interpretam os dias como literais. Até mesmo John Walton,
que interpreta os dias como literais, diz: “Dizer que os eventos em Gênesis 2
poderiam todos ocorrer em um dia de 24 horas (entre eles, nomear todos os animais,
o que aparentemente foi concluído porque nenhum ajudador foi encontrado) é
forçar credulidade”.[7]
Gênesis 2 começa com um texto
circunstancial de uma região específica, onde Deus plantou o jardim do Éden.
Após isso, Deus formou o homem pó da terra, e o levou para o jardim. Depois de
colocar o homem no jardim, Deus levou a ele todo o animal do campo, ave e gado
(2.19-20). Não tendo encontrado uma ajudadora, Deus lhe fez uma a partir de um
de seus lados (2.21).
Todos esses eventos não poderiam ter ocorrido
em 24 horas. Em primeiro lugar, o texto diz que Deus plantou o jardim, algo que
levaria muito mais do que 24 horas. Não há indícios, também, de que Deus tenha
acelerado o processo. Em segundo lugar, Adão teve de nomear milhares de
animais, sendo assim impossível uma tarefa impossível para ser concluída em 24
horas. Não há indícios no texto de que Adão tivesse superpoderes ou
superinteligência, e muito menos de que havia menos animais naquela época. Alguns
tentam responder que Adão nomeou as famílias de animais, e não os animais de
cada família. Entretanto, isso contradiz o próprio mandato cultural de Adão ter
de dominar os animais, já que o ato de nomear, no Antigo Oriente Médio,
indicava seu controle ou poder sobre o que foi nomeado[8].
O sexto dia, portanto, não pode, de modo
nenhum, ser um dia literal de 24 horas. Assim, toda a narrativa dos
Criacionistas de Terra Jovem torna-se invalidada pela própria evidência interna
do texto bíblico. Gleason Archer conclui: “Com base na evidência interna, é
convicção do presente escritor que yôm em Gênesis 1 não foi empregado
pelo autor hebreu com a intenção de descrever um dia literal de 24 horas”.[9]
Continua...
[1] No salmo de Moisés
(Salmo 90) as palavras “tarde” e “manhã” são usadas junto da palavra “dia” para
mostrar que um dia de Deus é equivalente a um longo período.
[2] WALTON, John. The lost world of Adam and Eve: genesis
2-3 and the human origins debate, Downers Grove: InterVarsity Press, 2015, p.
32. Edição ePub
[3] Ibid. p. 26
[4] WHITEFIELD, Rodney. The word “vayhiy” in genesis chapter one
support for an old Earth, 2013, pp. 2-10, disponível em http://www.creationingenesis.com/Vayhiy_in_Genesis_Chapter_One.pdf;
acesso 03/06/2019
[5] Essas duas últimas propostas
podem ser lidas em: GotQuestions. How
could there be light on the first day of Creation if the sun was not created
until the fourth day?, disponível em https://www.gotquestions.org/light-first-sun-fourth.html;
acesso 05/06/2019
[6] WALTON, John. The lost world of genesis one: ancient
cosmology and the origins debate, Downers Grove: InterVarsity Press, 2009, pp.
36-43
[7] WALTON, John. The lost world of Adam and Eve: genesis
2-3 and the human origins debate, Downers Grove: InterVarsity Press, 2015, p.
55. Edição ePub; Walton argumenta que Gênesis 2 é uma sequência de Gênesis 1,
não uma recapitulação. Esse tema será retomado em outro texto.
[8] Peet Van Dyk, Challenges in the Search for an Ecotheology.
Old Testament Essays, 2009. 22. p. 191, disponível em http://www.scielo.org.za/pdf/ote/v22n1/10.pdf;
acesso 04/06/2019
[9] Gleason Archer, Panorama
do Antigo Testamento, 2ª Ed., São Paulo: Vida Nova, 2012, p. 215
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