quarta-feira, 5 de junho de 2019

Os Dias de Gênesis (Parte 2)



Baseado no que vimos até aqui, percebemos que a questão não é “qual é a tradução correta da palavra yom?” A questão que enfrentamos é se a palavra “dia” é literal ou não. Certamente a tradução correta é “dia”, e o uso da formula “tarde e manhã” parece indicar isso. Porém, até mesmo essa formula não restringe os dias períodos de 24 horas.[1] Agora devemos avaliar o que nos é dito no quarto dia:

E disse Deus: Haja luminares na expansão dos céus, para haver separação entre o dia e a noite; e sejam eles para sinais e para tempos determinados e para dias e anos.
E sejam para luminares na expansão dos céus, para iluminar a terra; e assim foi.
E fez Deus os dois grandes luminares: o luminar maior para governar o dia, e o luminar menor para governar a noite; e fez as estrelas.
E Deus os pôs na expansão dos céus para iluminar a terra,
E para governar o dia e a noite, e para fazer separação entre a luz e as trevas; e viu Deus que era bom.
E foi a tarde e a manhã, o dia quarto.
Gênesis 1:14-19

Aqui temos um dos grandes desafios ao se interpretar Gênesis 1, e isso se deve a uma série de fatores. Em primeiro lugar, se formos ler como um relato estritamente literal, então temos que dizer que a lua é um luminar, ou seja, ela emite luz. Em segundo lugar, se interpretarmos também que o sol, a lua e as estrelas foram criadas nesse dia, com a própria função de marcar os dias, como pode ter havido três dias antes deste? E em terceiro lugar, a função do sol e da lua é a de separar a luz e as trevas, mas no primeiro dia nos é dito que o próprio Deus fez essa separação. Como, então, solucionar esses problemas?
O primeiro problema é facilmente resolvido ao entender duas coisas: primeiro, como dito antes, nem tudo nesses três primeiros capítulos deve ser lido de modo literal; segundo, temos que entendermos que, no Antigo Oriente Médio, “luz” não era algo físico[2].
O segundo problema só é um problema de verdade se descartarmos a ideia de que há uma proposta funcional nesse texto. Deus claramente está dando a função ao sol e à lua de marcar dias, estações e anos. Assim, devemos entender que o texto está nos dizendo apenas isso: o sol, a lua e as estrelas já existiam, mas agora eles possuam função de marcar os dias, as estações (relacionadas às festividades judaicas) e anos.
Há dois indicativos de que isso está acontecendo no texto, além do que está óbvio para nós: primeiro, o texto começa com “haja”, uma palavra que aparece nos dias um e dois para indicar que algo irá aparecer e logo depois lhe será dada uma função (1.3, 6). Segundo, a palavra hebraica traduzida por “fez” em 1.16 pode facilmente ser traduzida por “preparou” e ainda ser uma tradução literal[3]. A tradução para “preparou” está mais de acordo com o contexto e com o que o autor quer transmitir nele: Deus está preparando o mundo para que ele seja produtivo.
Talvez exista um fator nesse texto que indique a sua não-literalidade. Mas para mostrar isso, devemos ir ao dia 1: “E disse Deus: Haja luz; e houve luz”. A importância desse texto está nas palavras hebraicas utilizadas e na ordem em que elas são utilizadas. Em hebraico, nós lemos יְהִ֣י א֑וֹר וַֽיְהִי־ אֽוֹר (yehî ‘or wayhî ‘or). É importante perceber que Deus ordena que apareça o período de 12 horas da luz do dia e depois dessas 12 horas ele diz que houve luz (wayhî ‘or). Essa palavra hebraica wayhî indica uma mudança de referencial de tempo. Note que essa palavra começa com a conjunção vav, que indica uma continuidade na história. Porém, a palavra wayhî parece indicar uma sequência com um novo referencial de tempo (isso ocorre, por exemplo, em Jó 1.6; 13; 2.1; 1 Samuel 14.1; Gênesis 26.1; Rute 1.1).[4] Assim, se nós tempos um novo referencial de tempo, e se quando ela é usada após um comando ela indica que o comando foi finalizado, o que podemos dizer do seguinte texto do quarto dia:

E disse Deus: Haja luminares na expansão dos céus, para haver separação entre o dia e a noite; e sejam eles para sinais e para tempos determinados e para dias e anos.
E sejam para luminares na expansão dos céus, para iluminar a terra; e assim foi [wayhî ken].
Gênesis 1:14,15

O uso da palavra wayhî após Deus dar a função do sol e da lua marcarem os dias, tempos determinados e anos parece indicar que antes do quarto dia acabar, tudo isso foi realizado. Portanto, há um bom argumento aqui para a não-literalidade do quarto dia, fazendo dele um período muito mais longo do que o de 24 horas.
Por fim, o terceiro problema parece ser o mais difícil, se nós nos propusermos a ficar apenas com as ideias que o texto mostra. A sugestão de que Deus fazia a função de separar dia e noite até aqui parece ser forçar algo que o texto não diz. Ao mesmo tempo, dizer que o próprio Deus era a luz, pois em João ele é chamado de luz do mundo parece não entender o sentido de “luz” em João. Ainda mais, outros propõem que Deus era a luz, pois em Apocalipse diz que ele será a nossa fonte de luz. Entretanto, Gênesis não faz essa ligação, e não parece correto fazer essa ligação entre “novos céus e nova terra” e os nossos “céus e terra”.[5]
Já que esse problema não diz respeito diretamente à literalidade dos dias de Gênesis, podemos ir ao quinto dia, onde aparecem os animais marinhos:

E disse Deus: Produzam as águas abundantemente répteis de alma vivente; e voem as aves sobre a face da expansão dos céus.
E Deus criou as grandes baleias, e todo o réptil de alma vivente que as águas abundantemente produziram conforme as suas espécies; e toda a ave de asas conforme a sua espécie; e viu Deus que era bom.
E Deus os abençoou, dizendo: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei as águas nos mares; e as aves se multipliquem na terra.
E foi a tarde e a manhã, o dia quinto.
Gênesis 1:20-23

O relato do quinto dia pode ser entendido como um período de 24 horas ou não. Nada no texto parece fazer preferência a uma interpretação ou outra. Entretanto, há algumas coisas importantes a serem percebidas aqui: primeiro, o texto começa com Deus dando uma função às águas de produzir os répteis de alma vivente. No versículo seguinte, porém, o texto diz que Deus os criou. Há, aqui, portanto, uma contradição? Não, não há, mas nossas mentes ocidentais do século XXI tentam a impor conceitos no texto que não estão lá. A palavra hebraica bara, que é traduzida por “criar” não significa “criar a partir do nada” e também não significa, necessariamente, criação material.[6] Assim, podemos entender que o quinto dia também possui uma orientação de criação funcional.
O sexto dia é um dos mais importantes para a nossa análise:

E disse Deus: Produza a terra alma vivente conforme a sua espécie; gado, e répteis e feras da terra conforme a sua espécie; e assim foi.
E fez Deus as feras da terra conforme a sua espécie, e o gado conforme a sua espécie, e todo o réptil da terra conforme a sua espécie; e viu Deus que era bom.
E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.
E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.
E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.
E disse Deus: Eis que vos tenho dado toda a erva que dê semente, que está sobre a face de toda a terra; e toda a árvore, em que há fruto que dê semente, ser-vos-á para mantimento.
E a todo o animal da terra, e a toda a ave dos céus, e a todo o réptil da terra, em que há alma vivente, toda a erva verde será para mantimento; e assim foi.
E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom; e foi a tarde e a manhã, o dia sexto.
Gênesis 1:24-31

O texto de Gênesis 2.4-25 temos uma recapitulação do que ocorreu no sexto dia de Gênesis 1. Esse texto é um grande problema para os que interpretam os dias como literais. Até mesmo John Walton, que interpreta os dias como literais, diz: “Dizer que os eventos em Gênesis 2 poderiam todos ocorrer em um dia de 24 horas (entre eles, nomear todos os animais, o que aparentemente foi concluído porque nenhum ajudador foi encontrado) é forçar credulidade”.[7]
Gênesis 2 começa com um texto circunstancial de uma região específica, onde Deus plantou o jardim do Éden. Após isso, Deus formou o homem pó da terra, e o levou para o jardim. Depois de colocar o homem no jardim, Deus levou a ele todo o animal do campo, ave e gado (2.19-20). Não tendo encontrado uma ajudadora, Deus lhe fez uma a partir de um de seus lados (2.21).
Todos esses eventos não poderiam ter ocorrido em 24 horas. Em primeiro lugar, o texto diz que Deus plantou o jardim, algo que levaria muito mais do que 24 horas. Não há indícios, também, de que Deus tenha acelerado o processo. Em segundo lugar, Adão teve de nomear milhares de animais, sendo assim impossível uma tarefa impossível para ser concluída em 24 horas. Não há indícios no texto de que Adão tivesse superpoderes ou superinteligência, e muito menos de que havia menos animais naquela época. Alguns tentam responder que Adão nomeou as famílias de animais, e não os animais de cada família. Entretanto, isso contradiz o próprio mandato cultural de Adão ter de dominar os animais, já que o ato de nomear, no Antigo Oriente Médio, indicava seu controle ou poder sobre o que foi nomeado[8].
O sexto dia, portanto, não pode, de modo nenhum, ser um dia literal de 24 horas. Assim, toda a narrativa dos Criacionistas de Terra Jovem torna-se invalidada pela própria evidência interna do texto bíblico. Gleason Archer conclui: “Com base na evidência interna, é convicção do presente escritor que yôm em Gênesis 1 não foi empregado pelo autor hebreu com a intenção de descrever um dia literal de 24 horas”.[9]

Continua...



[1] No salmo de Moisés (Salmo 90) as palavras “tarde” e “manhã” são usadas junto da palavra “dia” para mostrar que um dia de Deus é equivalente a um longo período.
[2] WALTON, John. The lost world of Adam and Eve: genesis 2-3 and the human origins debate, Downers Grove: InterVarsity Press, 2015, p. 32. Edição ePub
[3] Ibid. p. 26
[4] WHITEFIELD, Rodney. The word “vayhiy” in genesis chapter one support for an old Earth, 2013, pp. 2-10, disponível em http://www.creationingenesis.com/Vayhiy_in_Genesis_Chapter_One.pdf; acesso 03/06/2019
[5] Essas duas últimas propostas podem ser lidas em: GotQuestions. How could there be light on the first day of Creation if the sun was not created until the fourth day?, disponível em https://www.gotquestions.org/light-first-sun-fourth.html; acesso 05/06/2019
[6] WALTON, John. The lost world of genesis one: ancient cosmology and the origins debate, Downers Grove: InterVarsity Press, 2009, pp. 36-43
[7] WALTON, John. The lost world of Adam and Eve: genesis 2-3 and the human origins debate, Downers Grove: InterVarsity Press, 2015, p. 55. Edição ePub; Walton argumenta que Gênesis 2 é uma sequência de Gênesis 1, não uma recapitulação. Esse tema será retomado em outro texto.
[8] Peet Van Dyk, Challenges in the Search for an Ecotheology. Old Testament Essays, 2009. 22. p. 191, disponível em http://www.scielo.org.za/pdf/ote/v22n1/10.pdf; acesso 04/06/2019
[9] Gleason Archer, Panorama do Antigo Testamento, 2ª Ed., São Paulo: Vida Nova, 2012, p. 215

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