quinta-feira, 16 de maio de 2019

Bereshit V.S. Criacionismo de Terra Jovem



Uma das discussões contemporâneas a respeito de Gênesis 1 tem como alvo o primeiro versículo do livro: “No princípio criou Deus os céus e a terra”. O que se discute com respeito a esse texto? Há duas perspectivas principais: uma que diz que é a criação do universo que ocorreu há um tempo indeterminado, e outra que diz que é como um título do capítulo. No meu livro eu defendo a primeira interpretação. Porém, há bons motivos para se interpretar do segundo modo também. Antes de entrar nessa discussão, vamos ensinar um pouco de hebraico básico. O foco é entender como funcionam as preposições e o artigo definido.
Existem algumas preposições no hebraico, mas há uma que é relevante para a nossa discussão é a preposição בְּ (Be), que significa “em”. Outra informação que devemos considerar é a dos artigos definidos. Em geral, se usa o artigo הַ (Ha). Quando a preposição בְּ possui artigo definido, não se escreve הַבְ (HaBe), mas se coloca בַּ, que é basicamente a letra בּ (bet) com a vogal chamada patah. Ou seja, בְּ + הַ =  בַּ. Quando não existe artigo definido e se coloca בְּ ligado a uma palavra, deve-se entender que a tradução seria “em um”, enquanto que quando há o בַּ deve-se traduzir por “no” (“em” + “o”).
Por que isso é relevante para nossa discussão sobre Gênesis 1:1? Bom, veja a primeira palavra de Gênesis: בְּרֵאשִׁ֖ית (Bereshit). Repare que a preposição בְּ da palavra não possui o artigo definido. Desse modo, a tradução literal não é “no princípio”, mas sim “em um princípio”.[1]
Outro fato importante sobre a palavra bereshit é que ela não designa um ponto inicial, mas sim um período de início. Exemplos disso podem ser vistos em Jeremias 28:1 e Gênesis 10:10. Os eventos de Jeremias 28:1 acontecem quatro anos após o início do reinado de Zedequias. Em Gênesis 10:10, “princípio” se refere a um tempo necessário para construir ou comandar quatro cidades, que é chamado de “princípio” de reinado de Ninrode. John Sailhamer diz: “Já que a palavra Hebraica traduzida para ‘princípio’ se refere a um período de tempo indefinido, nós não podemos saber por certo quando Deus criou o mundo ou quanto tempo Ele levou para criá-lo”.[2] Sailhamer continua dizendo que se Moisés quisesse dizer que Deus havia criado o universo de modo instantâneo, ele teria usado uma palavra que realmente significasse isso, como rishonah ou techillah. Essas palavras poderiam ser traduzidas como “ponto inicial”, de modo que Gênesis 1:1 seria traduzido como “A primeira coisa que Deus fez foi criar o universo”.[3]
O que, então, podemos concluir? Que a melhor tradução para Gênesis 1:1 é: “Em um período inicial, Deus criou os céus e a terra”. Esse não foi o princípio do universo, mas sim um princípio em que Deus trabalhou na criação, onde a terra já existia “sem forma e vazia”. Assim, devemos concluir que “um período inicial” se refere aos seis dias posteriores.
Evidência adicional para essa conclusão está no fato de que Gênesis 1:1 diz que Deus “criou os céus e a terra” e Gênesis 2:1 diz que ele “terminou os céus e a terra”. Ora, a obra finalizada é justamente o que Deus criou. Se em Gênesis 2:1-3 “céus e terra” se referem a todo o período da criação, então também podemos tirar essa conclusão com relação a 1:1. John Walton diz: “Gênesis 2:3 volta para esse tema [da criação] em seu resumo, indicando o término das atividades bara através do período de sete dias”.[4]
Alguns podem objetar dizendo que o versículo 2 começa com a conjunção וְ (vav), trazendo a ideia de que o verso 2 é uma sequência do verso 1. Assim, 1:1 deve ser uma atividade, seguida da descrição em 1:2. Contudo, tal conclusão ignora o fato de que a conjunção vav quando precede um substantivo, ao invés de um verbo, pode indicar uma pausa, não uma sequência. É por isso que a Bíblia de Jerusalém não traduz para “e a terra era sem forma...” e sim para “Ora, a terra era sem forma...”.
De fato, entender o relato dessa forma está mais de acordo com a forma como os relatos do Antigo Oriente Médio eram organizados. Primeiro, uma clausula dependente, seguida de uma circunstancial, que é, por fim, seguida do ato principal.[5] Observe que é exatamente assim que o “segundo relato” de Gênesis 2 é organizado:


Gênesis 1
Gênesis 2
Clausula dependente
No princípio Deus criou os céus e a terra. (1:1)
Quando o Senhor Deus fez a terra e os céus (2:4)
Clausula circunstancial
Era a terra sem forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. (1:2)
ainda não tinha brotado nenhum arbusto no campo, e nenhuma planta havia germinado, porque o Senhor Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra, e também não havia homem para cultivar o solo.
Todavia brotava água da terra e irrigava toda a superfície do solo. (2:5-6)
Ato principal
Disse Deus: "Haja luz", e houve luz. (1:3)
Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente. (2:7)

Repare como a clausula circunstancial toma um lugar semelhante ao de textos que colocamos entre parênteses no português, simplesmente explicando qual era o estado da terra naquele momento.
Ora, quais as implicações para isso na nossa interpretação do texto bíblico? Se esses argumentos estiverem corretos, então Gênesis 1:1 não fala da criação do universo, mas sim do período de 6 dias, nos quais Deus bara os céus e a terra, após obter a informação de pano de fundo de que a terra era sem forma (improdutiva) e vazia.
Assim, em qualquer uma das duas grandes intepretações de Gênesis 1:1-2 que você adotar (que 1:1 ocorreu em um período de tempo muito antes de 1:2, ou que 1:1 resume todas as atividades de 1:3-31) o Criacionismo de Terra Jovem se mostrará uma interpretação exegeticamente patética e gramaticalmente incorreta. Na interpretação aqui apresentada, a narrativa de Gênesis 1 já começa com a terra criada, o que, portanto, nos leva a concluir que Gênesis não tem absolutamente nada a nos dizer com respeito à idade da criação.


[1] Agradeço ao professor William L. Lane pelo comentário de Gênesis 1 de Claus Westermann.
[2] John Sailhamer, Genesis unbound: A provocative new look at the creation account, Multnomah Books, ePub 2011, Parágrafo 2.64
[3] Ibid., Parágrafo 2.192
[4] WALTON, John. The lost world of genesis one: ancient cosmology and the origins debate, Downers Grove: InterVarsity Press, 2009, p. 45.
[5] Ben S. Why Biblical Scholars Don't Take the Creation Museum Seriously, 2018, 7:00, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=8h33TyJkzwQ&t; acesso 15/05/2019

3 comentários:

  1. Se o bereshit é um resumo da criação, como explicar o fato de que na construção hebraica de Gênesis 1:1 o verbo bara está no perfeito, indicando que é um ato que precede a história principal?

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    1. Reshit está em construto com o verbo bara. Embora incomum, ocorre em outras partes da Bíblia hebraica (Oséias 1.2, Isaías 29.1, Levítico 15.48, 1 Samuel 15.15 e Jeremias 48.36). Isso, na verdade, indica que há um pronome relativo oculto na frase. A melhor tradução pro texto, portanto, seria "No período inicial [em que] Deus criou os céus e a terra - a terra era sem forma...". É possível traduzir para "Quando Deus começou a criar os céus...", que dá a mesma ideia. Meu artigo explicando isso pode ser encontrado em: https://www.academia.edu/92379273/O_PRINC%C3%8DPIO_NO_QUAL_DEUS_CRIOU_A_EXEGESE_DE_G%C3%8ANESIS_1_1_E_O_DI%C3%81LOGO_ENTRE_F%C3%89_E_CI%C3%8ANCIA

      Ou em:

      http://eventoscopq.mackenzie.br/index.php/jornada/xviii/paper/view/2921/1918

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    2. É importante destacar que essa tradução e interpretação está mais de acordo com o contexto histórico-cultural, já que outros textos criacionais do antigo Oriente Próximo também começam com uma oração subordinada (dependente).

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