Uma das discussões mais “ardentes”
que existe entre Criacionistas de Terra Jovem e os de Terra Antiga é a
discussão acerca da morte de animais antes do pecado original. Talvez
surpreenda o leitor ao saber que muito do que é dito pelos proponentes da Terra
Jovem a respeito disso é mais baseado em uma tradição exegética extremamente falha,
ao invés de um tratamento bíblico sério.
Com respeito a esse ponto,
não quero soar desrespeitoso, mas enfatizar o problema que certas tradições de
interpretação podem causar, de modo que simplesmente impedem que nós vejamos o
sentido dos textos. Um exemplo muito claro disso está em Gênesis 1.3, que diz: “E
disse Deus: Haja luz; e houve luz”. Se você já leu ou ouviu falar desse texto,
então você certamente acredita que Deus criou a luz nesse momento. Mas se você
continuar a leitura e prestar bem atenção, verá que Deus não está criando nada
material aqui:
E viu Deus que era boa
a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas.
E Deus chamou à luz
Dia; e às trevas chamou Noite. E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro. (Gn
1.4-5)
Deus chamou a mesma luz que “houve”
no v. 3 de “Dia”. Ou seja, se trocarmos “luz” por “Dia” (que é o nome que o
próprio Deus deu), veremos que Deus estava criando um período de tempo de 12
horas, não a luz.
Mas o que tudo isso tem a
ver com o título do artigo? Simplesmente devemos observar como nossas interpretações
tradicionais muitas vezes nos impedem de ver o sentido do texto e aceitar uma
interpretação diferente, simplesmente por orgulho dessa tradição.
No que diz respeito às
mortes, você ficará surpreso em saber que não existe absolutamente nenhum texto bíblico que diga que
animais não morriam antes da queda. Simplesmente não existe. Alias, o próprio
ser humano era mortal, tendo sua
imortalidade condicionada à Árvore da Vida: “Então disse o Senhor Deus: Eis que
o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal; ora, para que não estenda a
sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente”
(Gn 3.22).
Dizer que o homem era imortal
é o mesmo que dizer que Deus plantou a Árvore da Vida por futilidade, para ser
algo inútil no jardim.[1] Além disso, o próprio fato
de Adão ser criado “pó da terra” implica em sua mortalidade, já que “ser pó” é
uma expressão que indica a mortalidade (Gn 3.19; Jó 10.9; Ec 3.20; 2 Sm 22.43;
Sm 90.3, 103.14-16; Dn 12.2; 1 Cor 15.42-53).[2]
Ao
tentar defender sua posição, os CTJ dizem que Deus disse que Adão “certamente
morreria” no dia em que comesse do fruto da árvore do conhecimento do bem e do
mal. Contudo, dados os fatos de que (a) Adão não morreu no mesmo dia em que
comeu; (b) os argumentos acima ainda são válidos; e (c) ele foi expulso do
Jardim do Éden, devemos, portanto, interpretar que antes da queda Adão poderia morrer se não comesse do fruto
da Árvore da Vida, mas certamente morreria
sem ela. Como ele foi proibido de comer da cura da morte, ele, agora, certamente
morreria, tendo no mesmo dia a morte espiritual, sendo separado de Deus. E
assim a morte foi espalhada ao mundo, cheio de pessoas que também pecam (Rm
5.12).
Alguns
CTJ dizem que a tradução correta de “certamente morrerás” é “morrendo morrereis”.
Mas, essa tradução não faz sentido pois em outros contextos exatamente as
mesmas palavras são usadas e, se traduzidas por “morrendo morrereis” elas não
faze sentido. Exemplos desses textos são:
Agora, pois, restitui a mulher ao seu
marido, porque profeta é, e rogará por ti, para que vivas; porém se não lha
restituíres, sabe que certamente morrerás [tamuwth
muwth], tu e tudo o que é teu. (Gênesis 20:7)
Disse então Saul a Jônatas: Declara-me o
que tens feito. E Jônatas lho declarou, e disse: Tão-somente provei um pouco de
mel com a ponta da vara que tinha na mão; eis que devo morrer?
Então disse Saul: Assim me faça Deus, e
outro tanto, que com certeza morrerás [tamuwth
muwth], Jônatas. (1 Samuel 14:43,44)
Porém o rei disse: Aimeleque, morrerás
certamente [tamuwth muwth], tu e toda
a casa de teu pai. (1 Samuel 22:16)
Em
nenhum desses versos é possível traduzir para “morrendo morrereis”. Todo o
contexto deles impede a interpretação de que essas pessoas iriam começar o
processo de morte.
No
hebraico, a repetição de palavras é usada para enfatizar o sentido dessas
palavras. Por exemplo, quando é dito que Deus é “Santo, Santo, Santo”, é para
dar ênfase na grande santidade de Deus.
Em
Êxodo 21:20, lemos que quem ferisse um servo, “certamente seria castigado”.
Aqui há a repetição da palavra naqam,
lendo yinaqam naqam. Seria estranho
traduzir por “castigando castigarás”, ou dizer que a partir do momento que
ferissem um servo iria começar o processo do castigo. O propósito da repetição
é dar ênfase na certeza do que o verbo diz.
Por
fim, as mesmas palavras ditas por Deus são repetidas pela serpente em Gênesis 3.4,
com a adição de um “não”. Teríamos que traduzir, se os CTJ estivessem certos,
para “morrendo não morrereis”, o que não faz sentido algum.
Portanto,
o que Deus disse a Adão é que no dia em que ele comesse do fruto proibido, ele
certamente morreria. A única coisa que aconteceu no dia em que Adão comeu do
fruto foi sua expulsão do jardim e da presença da Árvore da Vida. Assim, o que
lhe garantia a vida eterna era o fruto essa Árvore.
Assim, seria estranho pensar
no homem como mortal e os animais como imortais. Mas os CTJ continuam persistindo,
usando o texto de Gênesis 1.29: “E disse Deus: Eis que vos tenho dado toda a
erva que dê semente, que está sobre a face de toda a terra; e toda a árvore, em
que há fruto que dê semente, ser-vos-á para mantimento.”
O problema com esse texto é
que, além dele não proibir o consumo
de carne animal, ele também é precedido por outro texto:
E Deus os abençoou, e
Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a;
e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo
o animal que se move sobre a terra.
E disse Deus: Eis que
vos tenho dado toda a erva que dê semente, que está sobre a face de toda a
terra; e toda a árvore, em que há fruto que dê semente, ser-vos-á para
mantimento. (Gn 1.28-29)
As
palavras hebraicas traduzidas por “subjuguem”/”sujeitai” e “dominem” são kabash e radah. Essas palavras são usadas de uma forma violenta no restante
do Antigo Testamento. Como Daniel J. Stulac explica, a palavra kabash é usada em Números 32.22, 29;
Josué 18.1 e 2 Samuel 8.11 para falar da conquista da terra. Em Jeremias 34.11
e 2 Crônicas 28.10 o termo é usado para a opressão de escravos. Em Ester 7.8 e
Neemias 5.5 é usado de modo que implica o estupro. Zacarias 9.15 diz que “eles
vão pisotear e destruir [kabash] as
pedras das atiradeiras”.[3]
Joshua
John Van Ee fez sua dissertação de doutorado nesse tema e no uso dessas
palavras em Gênesis. A sua conclusão sobre a palavra kabash é a seguinte:
Como essa noção de ganhar domínio se
relaciona com um objeto inanimado como a terra? Gênesis 1:28 é o único lugar
onde [kabash] aparece com [erets] como objeto direto; entretanto,
há outros quatro usos de [kabash]
[...] onde [erets] é o sujeito
[Números 32:22, 29; Josué 18:1, 1 Crônicas 22:18]. Essas descrições em que a
terra tem que ser subjugada nos ajuda a determinar o que significa subjugar a
terra. Todas elas estão em um contexto de guerras israelitas contra outras
nações na terra de Canaã. [...] O subjugar da terra não se refere ao exercício
das atividades culturais de agricultura e construção, mas sim o que os precede
para torna-los possível. Forças opostas devem ser derrotadas antes da terra ser
subjugada. De fato, subjugar a terra é derrotar forças opostas. Nesses versos,
as referências sobre a terra são uma metonímia para as nações opostas na terra.
A terra ser subjugada é equivalente às pessoas da terra serem conquistadas.
Portanto, o dever da humanidade em 1:28 é o de estender o seu domínio pela
força contra qualquer um no mundo que se oponha a ela. Ainda assim, quem os
humanos vão subjugar? Para responder a essa pergunta é importante se lembrar da
progressão lógica no comando em 1:28. Os humanos devem subjugar o mesmo grupo
que eles dominam, os animais.[4]
O
termo usado para dominar, radah, não
significa uma dominação pacifica, como a de um administrador. Ao invés disso,
como diz Van Ee, é um termo que “comunica uma forma de controle altamente
coerciva”, e a “crueldade ou injustiça” (Levítico 26.17; Neemias 9.28; Isaías
14.6).[5] E
também há textos onde o termo é usado com outras palavras para deixar mais
explícito, como Levítico 25.43, 46, 53, Ezequiel 34:4 e Isaias 14:6. Van Ee diz
que, “O foco é em ter poder sobre alguém, não em executar tarefas
administrativas ou funções burocráticas”.[6] O
autor também diz:
[Radah]
normalmente possui conotações de realeza e se refere à dominação de reis ou de
um estado sobre nações estrangeiras. É usado em paralelo com outras descrições
de batalha para descrever a conquista inicial de uma nação [Levítico 26:17,
Números 24:19, Neemias 9:28, Salmos 110:2, Isaías 14:2]. Também se refere ao
poder exercido sobre aqueles anteriormente subjugados por guerra ou ameaça de
guerra [1 Reis 5:4, Sálmos 72:8, Isaías 14:6, Ezequiel 29:15].[7]
Ele
conclui: “Portanto, é importante notar que em todas as ocorrências de [radah], aquele que é dominado está sob
alguma forma de coerção para submissão.”[8]
Assim,
o fato de Deus ordenar que Adão e Eva kabash
a terra e radah os animais implica
que eles deveriam subjugar a terra após uma batalha de dominação com os animais
por ela. Se há uma luta com animais em um sentido severo, então animais
certamente morriam nesse contexto. Essa ordem de Deus está diretamente ligada
ao fato de que Adão e Eva deveriam “multiplicar”. Quando maior o número de
pessoas, maior a necessidade também de subjugar e dominar as regiões da terra
habitadas por animais.
Essa
conclusão está de perfeito acordo com o que outros textos das Escrituras nos
dizem. Em um contexto de criação, o Salmo 104:21, nos diz que o leão caça sua
presa, e Jó 38.39-41, explicita que é Deus que alimenta os leões e os corvos.
Esse
argumento também mostra o problema de interpretações tradicionais, que dizem
que “subjugar” e “dominar” são termos “happy happy cute cute cuidem do mundo
yaay”. Alguns até interpretam que o domínio foi dado ao homem, quando, na
verdade, o texto é imperativo.
Contra
o argumento acima apresentado, os CTJ vão citar um texto pós-dilúvio para
tentar provar seu ponto de que animais não poderiam servir de alimento para
Adão, Eva e suas gerações até o dilúvio. O texto é o de Gênesis 9, que diz:
E abençoou Deus a Noé e a seus filhos, e
disse-lhes: Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra.
E o temor de vós e o pavor de vós virão
sobre todo o animal da terra, e sobre toda a ave dos céus; tudo o que se move
sobre a terra, e todos os peixes do mar, nas vossas mãos são entregues.
Tudo quanto se move, que é vivente, será
para vosso mantimento; tudo vos tenho dado como a erva verde.
A carne, porém, com sua vida, isto é, com
seu sangue, não comereis. (Gênesis 9:1-4)
Se
matar os animais era algo pecaminoso, esse texto iria contradizer tudo o que
foi dito antes, além de outros textos, como Gênesis 3:21, onde Deus faz túnicas
de pele para Adão e Eva, Gênesis 4:4, em que Abel leva o primogênito das suas
ovelhas como oferta a Deus.
O foco
do texto de Gênesis 9:3 não é o de dizer que os homens podiam, a partir daquele
momento, comer carne. Mas sim na proibição dos versículos 4-6 de que não
poderiam comer o sangue. Isso fica evidente pela estrutura do texto, que é
usado no restante do Antigo Testamento para da introduzir uma proibição.
Considere estes exemplos:
Todo o animal que tem unhas fendidas,
divididas em duas, que rumina, entre os animais, aquilo comereis.
Porém estes não comereis, dos
que somente ruminam, ou que têm a unha fendida: o camelo, e a lebre, e o
coelho, porque ruminam mas não têm a unha fendida; imundos vos serão.
[...]
Isto comereis de tudo o que há nas águas;
tudo o que tem barbatanas e escamas comereis.
Mas tudo o que não tiver
barbatanas nem escamas não o comereis; imundo vos será.
[...]
Toda a ave limpa comereis.
Porém estas são as que não
comereis: a águia, e o quebrantosso, e o xofrango.
(Deuteronômio 14:6-7, 9-10, 11-12)
Essa
estrutura de texto era normalmente usada para enfatizar uma proibição, não uma
permissão. Também podemos encontrar essa estrutura presente nas diversas
restrições alimentares de Levítico 11. Perceba que os animais “permitidos” na
estrutura presente em Deuteronômio estão dentre os “animais da terra”, “aves do
céu” e “peixes do mar” citados em Gênesis 9:1-4. Se essa estrutura começa
permitindo algo que antes não era permitido, então os textos de Deuteronômio
citados contradizem os de Gênesis 9.
O que
acontece aqui é, na verdade, que o texto começa falando de algo que eles já
podiam comer (como implicado por Gênesis 1:28), mas usa isso de introdução para
falar de algo que não poderia servir de alimento. Como diz Van Ee:
[Gênesis 9:3] é uma introdução necessária
(ou pelo menos uma formula) para 9:4-6. O direito da humanidade de comer
animais é dito de modo mais explicito em 9:3 do que em 1:28 por causa da
proibição que estava sendo introduzida [...] Os humanos antes do dilúvio tinham
o direito de comer carne, mas restrições foram colocadas nesse direito para
diminuir a violência. Em Gênesis 1:28 o direito de comer os animais estava
implícito, mas em 9:3 ele precisou ser explicitamente mencionado, já que Deus
estava modificando essa maneira da humanidade se relacionar com os animais. [9]
Portanto,
ao invés de Gênesis 9:1-6 mostrar que antes não era permitido o consumo de
carne, esse texto na verdade demonstra que os humanos pré-dilúvio se
alimentavam com carne de animais também.[10]
O
texto ficou mais longo do que eu esperava, mas tentei resumir algumas partes do
meu livro A Gênese em Gênesis*.
Concluímos, portanto, que certamente haviam mortes de animais antes do pecado.
O ser humano não foi criado vegetariano, mas sim alguém que poderia comer
carne, assim como existiam animais carnívoros.
Em outro texto falaremos mais sobre o que "muito bom" significa, e como sabemos que ele não exclui a existência de mortes antes da queda.
* Esse texto é parte do livro A Gênese em Gênesis: solucionando a controvérsia das eras, 2ª Ed., São Paulo: Ed. do Autor, 2019, p. 149-166
[1] A interpretação de que essa “vida eterna” era qualitativa é uma adição ao texto, sem qualquer razão exegética para ser aceita.
[1] A interpretação de que essa “vida eterna” era qualitativa é uma adição ao texto, sem qualquer razão exegética para ser aceita.
[2] John Walton,
The lost world of Adam and Eve: Genesis 2-3 and the human origins debate,
Downers Grove. IL: InterVarsity Press, 2015 ,p. 62. Edição ePub
[3] Daniel J. Stulac, Hierarchy and Violence in Genesis 1:26-28:
An Agrarian Solution, 2013, disponível em https://www.academia.edu/5186990/Hierarchy_and_Violence_in_Genesis_1_26-28_An_Agrarian_Solution?a;
acesso 06/01/2019
[4] Joshua John Van Ee,
Death and the Garden: An Examination
of Original Immortality, Vegetarianism, and Animal Peace in the Hebrew Bible
and Mesopotamia, 2016, p. 201, 206-207, disponível em https://escholarship.org/uc/item/0qm3n0mt; acesso 06/01/2019
[5] Ibid, p. 207
[6] Ibid. p. 208
[7] Ibid.
[8] Ibid. p. 211
[9] Ibid. p. 245, 249, 206-207
[10] A tradução da NVI coloca que “agora” eles poderão
comer animais, assim como comem vegetais. Mas o “agora” não existe no hebraico.
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