Eu encontrei uma defesa ao que Ed René Kivitz disse ("a
Bíblia devia ser atualizada") no Facebook hoje (21/10/2020). Eu nem ia
responder a isso, mas como a pessoa que compartilhou me deu uma provocada,
resolvi responder. E, na verdade, é bem simples. Segue a primeira parte do post:
“KIVITZOFOBIA:
Atenção crentes que
acham que a Bíblia deve ser interpretada literalmente (letra) e nunca
atualizada (hermenêutica) para preservar e reavivar sua mensagem essencial
(espírito)!
A partir de hoje os
literalistas não podem mais:
1. Comer carne de porco,
camarão, frango ao molho pardo e outras iguarias do gênero (Lev. 11);
2. Cortar os cabelos
dos lados, nem aparar as pontas da barba (Lv. 19);
3. Ter nenhum tipo de
intimidade com seu cônjuge durante aquele período (Lev. 15; 20:18). Ah! E se ao menos tocar nela, ou se
deitar na mesma cama, tem de se purificar;
4. Se for pastor não
pode usar óculos, nem ter cicatriz no rosto, nem mancar, nem testículos
defeituosos ou qualquer defeito, nem entrar onde houver um cadáver (Lev. 21).
Culto fúnebre está terminantemente proibido;
5. Vender um terreno,
fazenda, sítio, etc. (Lev. 25:23);
6. Se for agricultor,
não pode plantar no sétimo ano. Deve deixar a terra descansar (Lev. 25); 7.
Deixar de guardar o sábado (Lev. 26:2); e
8. Deixar de perdoar a
dívida de um devedor seu no sétimo aniversário da dívida (Lev. 25);”
É...
esse é o nível do argumento. Mas, enfim, é simples responder. Em primeiro
lugar, o autor do post não sabe o que é literalismo de fato. Literalismo
é uma tentativa de hermenêutica (extremamente falha, por sinal) que (popularmente_
diz que devemos interpretar os textos o mais literal possível. Então, por
exemplo, John MacArthur, que segue uma linha mais literalista, vai dizer que,
quando Apocalipse nos diz que não haverá mais lagrimas, é porque não teremos
mais glândulas lacrimais. MacArthur define o seu “princípio literal” dizendo:
A Escritura deve ser entendida
em seu sentido literal, normal e natural. Apesar de conter figuras de linguagem
e símbolos, eles foram intencionados para transmitir verdade literal. Em geral,
todavia, a Bíblia fala em termos literais e devemos permitir que ela fale por
si mesma.[1]
Mas
isso pouco importa para o argumento do indivíduo, então não criemos red
herrings. Perceba que a maioria dos pontos iniciais do argumento dele são
de mandamentos do Antigo Testamento. Para entender porque essa foi uma
tática ignorante, faz-se importante destacar a distinção feita entre preceito
e princípio:
·
Preceito: diz respeito à regra
como ela está escrita e como foi dita. Eles “não passam do primeiro passo para compreender
a moralidade básica”[2]. Mas, dentro de cada
preceito há algo que o fundamenta, que é o que chamamos de...
·
Princípio: é
uma norma que permite a aplicação de um preceito em diferentes circunstâncias.
Para
entender melhor esse ponto, considere o seguinte exemplo: todos concordam com o
preceito de que enfiar a faca em uma pessoa é errado. Mas, no caso de
uma cirurgia nos órgãos internos do indivíduo, um corte tem que ser feito em
seu corpo. Logo, o princípio, que em uma situação normal explicaria o porquê de
um ato estar certo ou errado, traz uma aplicação diferente nessa circunstância.
Mas, vamos usar alguns exemplos bíblicos pra tornar mais claro:
No
Antigo Testamento, os judeus deviam fazer sacrifícios de animais. Muitos deles
passaram a fazer esse sacrifício como uma forma de ter a consciência limpa,
pensando “ah, pequei aqui, mas o cordeiro sacrificado cobre, então ta de boa”. O
problema é que o motivo do sacrifício era lembrar Israel da seriedade do pecado
e leva-los ao arrependimento. No Novo Testamento, o preceito de sacrifício
de animais foi abolido, mas o princípio continuou intacto: o sacrifício ocorreu
(de Cristo) e ele deve nos lembrar da seriedade do pecado e nos levar ao
arrependimento.
No
Antigo Testamento, tínhamos várias leis de alimentação e pureza. O motivo
principal dessas leis era manter Israel separado dos povos vizinhos, de modo
que não viessem a se misturar com eles.[3] O Deus de Israel não quer
apenas separar seu povo dos vizinhos pagãos, mas também reformá-lo e
mostrar que uma vida dedicada a Deus afeta todas as áreas de suas vidas.[4] Esse princípio se mantém
no Novo Testamento. Paulo diz que ninguém deve nos julgar pelo comer e nem pelo
beber, pois, assim como o Shabbath, essas leis são sombras de Cristo (Cl
2.16-17).
Mas
como esse princípio se aplica aos que estão em Cristo? Enquanto o povo de Deus,
na Antiga Aliança, foi separado por preceitos práticos, na Nova Aliança Deus
diz que esse povo, antes representado pelos alimentos impuros, foi purificado
pelo sacrifício de Cristo (At 10.9-29). A separação, no entanto,
continua, e ela não é feita a partir de preceitos, mas sim do princípio
do amor. Como “nem todo de Israel é israelita” (Rm 9.6) o povo de Deus não está
mais preso à uma nação.
O
mesmo vale para leis como a lei do sábado. Seu preceito era sombra, o princípio
é Cristo, como Paulo diz em Colossenses. Várias das leis relacionadas ao
sacerdócio, templo etc. tem o mesmo princípio (Hb 8.5; 10.1)
A
defesa de Kivitz continua:
Ainda bem
que Jesus ATUALIZOU o VT ao ressignificar o coração das Escrituras sagradas de
seu tempo: "Assim foi dito aos antigos... Eu porém lhes digo..." (Mt.
5:27-48)
Assim,
barrou um linchamento, legitimado pela Bíblia, ao desafiar os religiosos
defensores da letra: "Quem não tem pecado atire a primeira pedra"
(Jo. 8:1-11)
E ainda
deixou um recado para quem olha de rabo de olho para um "rabo de
saia" ("No seu coração já cometeu adultério com ela" (Mt. 5:27);
Isso
não é uma “atualização” da Lei. No caso dos textos que afirmam “vocês
ouviram... Mas eu lhes digo...”, Jesus está justamente apontando que seguir
cegamente o preceito sem levar em consideração seu princípio é errado. Os
judeus tinham uma gama enorme de leis adicionais para tornar a vida mais pesada
com a suposta prerrogativa de que isso dificultaria o descumprimento do
preceito. Mas isso acabou levando a um acréscimo muito grande da lei que tornava
a vida dos judeus um fardo. Adiante:
Por isso,
e muito mais, foi chamado de beberrão, herege e endemoninhado. Quem o tratou
assim? essencialmente Escribas e fariseus, os donos das Sagradas Letras.
Quem se
acha dono das Escrituras quer o direito exclusivo de interpretá-las e dizer o
que é certo e errado na interpretação dos outros, usando isto,
inconscientemente, ou não, como ferramenta de controle sobre o povo.
Jesus
também ressignificou/atualizou/ampliou o sentido de discipulado e de família:
Deixar pai e mãe e tomar sua cruz, no primeiro caso. Família (pai, mãe e irmã),
como sendo todo aquele que faz a vontade do Pai.
E
Jesus usou justamente uma boa exegese e uma boa teologia para responder
aos Escrivas e Fariseus. Ele não foi contra eles por serem interpretes das
Escrituras, mas sim por serem interpretes ruins e se importarem apenas em usar
seus cargos de “mestres” para parecerem mais santos.
O próximo
parágrafo é risível e se aplica ao próprio autor: “Quem se acha dono das
Escrituras quer o direito de atualizá-las e dizer o que é certo e errado na
interpretação de acordo com seu tempo, usando isto, inconscientemente, ou não,
como ferramenta de controle sobre o povo.”
Em
seguida (meu Deus do céu) ele diz:
E andou
sempre assim: na contramão, rompendo, até ser crucificado por conspiração deles
em nome da ortodoxia deles.
Mas a
ressurreição ATUALIZOU o Gênesis: "Haja luz! E Houve luz."
E no Novo
Testamento tem alguma coisa mais que precisa ser atualizada?
Quem acha
que não, deve imediatamente:
1. Vender
tudo que tem, dar o dinheiro todo aos pobres e passar a viver e andar como
Francisco, não necessariamente o de Roma, o de Assis.
2. Não
considerar como seu nada que possuir, mas compartilhar com a igreja/comunidade
tudo, absolutamente tudo o que for seu (Atos 4:32-33);
3. Vender
tudo que tem - "terras ou casas" - e entregar o dinheiro da venda aos
líderes, no caso, apóstolos. Ops! Atualizo o termo para pastores (At. 4:34-35);
4. Cair
duro na hora, se descoberto retendo parte do dinheiro da venda (atualizando:
dízimo) como foi o caso de Ananias e Safira (At. 5);
5. Se
divorciado, ficar sozinho(a) para o resto da vida, a não ser "por causa de
adultério." Se for pastor, eliminar todos os divorciados recasados.
6. Se,
por acaso, tomar um tapa na cara, deve virar a outra face; emprestar sem
pestanejar; dar a qualquer que lhe pedir ou quiser tomar seus pertences... (Mt.
5)
7.
Sujeitar-se a toda e qualquer autoridade governamental - isso implica em não
fazer chacota nas redes sociais - mesmo
que o governo seja petista, facista, trumpista ou comunista. Sujeicão plena,
diz a letra de Romanos 13:1.
8. Não
comprar nada a crédito: "Não devam nada a ninguém" (Rm. 13:8). Comece
rasgando todos os cartōes!
Aqui,
na maioria dos textos citados, o autor comete outro erro de hermenêutica bem
simples: confunde prescrição com descrição. Não é porque o livro
de Atos descreve os cristãos fazendo algo que Lucas está mandando
fazer. E mais, tome como exemplo o texto de Atos 2, onde aparece pela primeira
vez o caso de “vender propriedades e bens” (At 2.45). É meio óbvio que eles não
vendiam tudo o que tinham, pois no próprio versículo seguinte é dito que
eles “partiam o pão em suas casas”.
O
texto de Mateus 5 é no contexto de perseguição, não a qualquer momento (olha o
princípio sendo aplicado em diferentes circunstâncias, não é mesmo?).
O
autor desse texto realmente -realmente- acha que Paulo, em Romanos 13,
está falando que o cristão deve sujeitar-se ao governo em um contexto onde o
governo age de forma contrária à Palavra de Deus???
A
seguir...
Se você é
do gênero feminino: (I Cor 11)
8. Não orar com a cabeça descoberta;
9. Não ensinar a homens;
10. Ficar
calada na igreja
11. Contentar-se com parir filhos
12. Não
cortar o cabelo
Se você é
macho (I Cor 11):
1. Não
pode orar com a cabeça coberta
2. Não
pode ter cabelo comprido
3. Não
permitir que a mulher ensine (I Tm. 2:12);
De
novo, preceito e princípio. Paulo está falando do princípio de
honrar o marido, que, naquele contexto, era demonstrado cobrindo a cabeça. Mas,
hoje em dia não é mais assim. “ARRÁ! BÍBLIA ATUALIZADA!” – Não, meu nobre
desconhecedor dos fatos, é simplesmente o princípio citado por Paulo que
continua ativo e sem nenhuma modificação. O resto do texto está a seguir e eu
darei meus comentários finais logo abaixo:
E tudo
por que: "O homem... é imagem e glória de Deus, mas a mulher é gloria do
homem." E é? A mulher é só a glória do homem e nada de Deus?
E como
fica a expressão: "Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus os
criou; homem e mulher os criou" (Gn. 1: 27)?
Mas se a
tradição ("...e por se apegarem às tradiçōes..." I cor.
11:1) entra na Bíblia, a atualização teológica atualiza/ressignifica a
tradição. No mesmo capítulo, diz o autor: "No Senhor, todavia, a mulher
não é independente do homem, nem o homem independente da mulher (I Cor 11: 11;
c.f. Gl. 3:28).
Mas há
muito conteúdo na Bíblia que deveríamos seguir literalmente. Por exemplo:
"Portanto,
deixemos de julgar uns aos outros..." (Rm. 14:13a);
"Aceitem
uns aos outros da mesma forma que Cristo os aceitou" (Rm. 15:7a);
"Sejam
agradecidos" (col. 3:15).
Portanto,
na Bíblia:
Nem tudo
é literal, mas também;
Nem tudo
é simbólico, mas também;
Nem tudo
é atualizável, mas também;
Nem tudo
é racional, mas também;
Nem tudo
é espiritual, mas também;
Nem tudo
é cultura - judáica, grega ou romana - ressignificada ou reinterpretada - mas
também;
Nem tudo
é tradição, beduína ou farisáica, mas também...
Parafraseando
lavoisier:
Na Bíblia
tudo se cria, nada se perde, tudo se transforma, se ATUALIZA.
"Transformai-vos
pela renovação da vossa mente." (Rm. 12:3)
Trans-formar-se
é adquirir novas formas; e isto requer ATUALIZAÇÃO, necessariamente.
Foi assim
que a Bíblia tratou a cultura...
É assim
que o Espírito Santo trata a Bíblia, nos fazendo lembrar, com criatividade e
espírito profético, o que Jesus ensinou: Os princípios do Reino de Deus que
Paulo, mais tarde, sintetizou/atualizou para a igreja de Roma, como sendo "justiça, paz e alegria no Espírito
Santo" (Rm. 14:17b).
E o
Espírito segue falando... Nesses termos.
"Quem
tem ouvidos para ouvir, ouça."
Josias
Bezerra Da Silva
Fica
bem claro que o autor não tem um entendimento bíblico muito profundo. Mas
vamos, pelo bem do argumento, assumir que seus pontos são de alguma relevância.
Deveríamos concluir que o argumento dele é válido? Não. Sabe por que? Porque
todos os exemplos usados por ele vêm do próprio Jesus (que supostamente
atualizou a Bíblia) e de autores inspirados por Deus. Eles vêm de quem pode,
não de um pastor liberal.
[1] MACARTHUR, John. Manual
bíblico MacArthur: uma meticulosa pesquisa da Bíblia, livro a livro,
elaborada por um dos maiores teólogos da atualidade, 1. Ed., Rio de Janeiro:
Thomas Nelson Brasil, 2015, p. 38.
[2] MACDOWELL, John;
HOSTETLER, Bob. Certo ou errado?, São Paulo: Editora Candeia, 1997, p.
120.
[3] COPAN, Paul. Is God
a moral monster? Grand Rapids, MI: Baker Books, 2012, p. 70
[4] Ibid. p. 74.
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