sábado, 31 de outubro de 2020

Respondendo à alegação de "KIVITZofobia"

Eu encontrei uma defesa ao que Ed René Kivitz disse ("a Bíblia devia ser atualizada") no Facebook hoje (21/10/2020). Eu nem ia responder a isso, mas como a pessoa que compartilhou me deu uma provocada, resolvi responder. E, na verdade, é bem simples. Segue a primeira parte do post:

 

“KIVITZOFOBIA:

Atenção crentes que acham que a Bíblia deve ser interpretada literalmente (letra) e nunca atualizada (hermenêutica) para preservar e reavivar sua mensagem essencial (espírito)!

A partir de hoje os literalistas não podem mais:

1. Comer carne de porco, camarão, frango ao molho pardo e outras iguarias do gênero (Lev. 11);

2. Cortar os cabelos dos lados, nem aparar as pontas da barba (Lv. 19);

3. Ter nenhum tipo de intimidade com seu cônjuge durante aquele período (Lev. 15;  20:18). Ah! E se ao menos tocar nela, ou se deitar na mesma cama, tem de se purificar;

4. Se for pastor não pode usar óculos, nem ter cicatriz no rosto, nem mancar, nem testículos defeituosos ou qualquer defeito, nem entrar onde houver um cadáver (Lev. 21). Culto fúnebre está terminantemente proibido;

5. Vender um terreno, fazenda, sítio, etc. (Lev. 25:23);

6. Se for agricultor, não pode plantar no sétimo ano. Deve deixar a terra descansar (Lev. 25); 7. Deixar de guardar o sábado (Lev. 26:2); e

8. Deixar de perdoar a dívida de um devedor seu no sétimo aniversário da dívida (Lev. 25);”

 

É... esse é o nível do argumento. Mas, enfim, é simples responder. Em primeiro lugar, o autor do post não sabe o que é literalismo de fato. Literalismo é uma tentativa de hermenêutica (extremamente falha, por sinal) que (popularmente_ diz que devemos interpretar os textos o mais literal possível. Então, por exemplo, John MacArthur, que segue uma linha mais literalista, vai dizer que, quando Apocalipse nos diz que não haverá mais lagrimas, é porque não teremos mais glândulas lacrimais. MacArthur define o seu “princípio literal” dizendo:

 

A Escritura deve ser entendida em seu sentido literal, normal e natural. Apesar de conter figuras de linguagem e símbolos, eles foram intencionados para transmitir verdade literal. Em geral, todavia, a Bíblia fala em termos literais e devemos permitir que ela fale por si mesma.[1]

Mas isso pouco importa para o argumento do indivíduo, então não criemos red herrings. Perceba que a maioria dos pontos iniciais do argumento dele são de mandamentos do Antigo Testamento. Para entender porque essa foi uma tática ignorante, faz-se importante destacar a distinção feita entre preceito e princípio:

·         Preceito: diz respeito à regra como ela está escrita e como foi dita. Eles “não passam do primeiro passo para compreender a moralidade básica”[2]. Mas, dentro de cada preceito há algo que o fundamenta, que é o que chamamos de...

·         Princípio: é uma norma que permite a aplicação de um preceito em diferentes circunstâncias.

Para entender melhor esse ponto, considere o seguinte exemplo: todos concordam com o preceito de que enfiar a faca em uma pessoa é errado. Mas, no caso de uma cirurgia nos órgãos internos do indivíduo, um corte tem que ser feito em seu corpo. Logo, o princípio, que em uma situação normal explicaria o porquê de um ato estar certo ou errado, traz uma aplicação diferente nessa circunstância. Mas, vamos usar alguns exemplos bíblicos pra tornar mais claro:

No Antigo Testamento, os judeus deviam fazer sacrifícios de animais. Muitos deles passaram a fazer esse sacrifício como uma forma de ter a consciência limpa, pensando “ah, pequei aqui, mas o cordeiro sacrificado cobre, então ta de boa”. O problema é que o motivo do sacrifício era lembrar Israel da seriedade do pecado e leva-los ao arrependimento. No Novo Testamento, o preceito de sacrifício de animais foi abolido, mas o princípio continuou intacto: o sacrifício ocorreu (de Cristo) e ele deve nos lembrar da seriedade do pecado e nos levar ao arrependimento.

No Antigo Testamento, tínhamos várias leis de alimentação e pureza. O motivo principal dessas leis era manter Israel separado dos povos vizinhos, de modo que não viessem a se misturar com eles.[3] O Deus de Israel não quer apenas separar seu povo dos vizinhos pagãos, mas também reformá-lo e mostrar que uma vida dedicada a Deus afeta todas as áreas de suas vidas.[4] Esse princípio se mantém no Novo Testamento. Paulo diz que ninguém deve nos julgar pelo comer e nem pelo beber, pois, assim como o Shabbath, essas leis são sombras de Cristo (Cl 2.16-17).

Mas como esse princípio se aplica aos que estão em Cristo? Enquanto o povo de Deus, na Antiga Aliança, foi separado por preceitos práticos, na Nova Aliança Deus diz que esse povo, antes representado pelos alimentos impuros, foi purificado pelo sacrifício de Cristo (At 10.9-29). A separação, no entanto, continua, e ela não é feita a partir de preceitos, mas sim do princípio do amor. Como “nem todo de Israel é israelita” (Rm 9.6) o povo de Deus não está mais preso à uma nação.

O mesmo vale para leis como a lei do sábado. Seu preceito era sombra, o princípio é Cristo, como Paulo diz em Colossenses. Várias das leis relacionadas ao sacerdócio, templo etc. tem o mesmo princípio (Hb 8.5; 10.1)

A defesa de Kivitz continua:

 

Ainda bem que Jesus ATUALIZOU o VT ao ressignificar o coração das Escrituras sagradas de seu tempo: "Assim foi dito aos antigos... Eu porém lhes digo..." (Mt. 5:27-48)

Assim, barrou um linchamento, legitimado pela Bíblia, ao desafiar os religiosos defensores da letra: "Quem não tem pecado atire a primeira pedra" (Jo. 8:1-11)

E ainda deixou um recado para quem olha de rabo de olho para um "rabo de saia" ("No seu coração já cometeu adultério com ela"  (Mt. 5:27);

 

Isso não é uma “atualização” da Lei. No caso dos textos que afirmam “vocês ouviram... Mas eu lhes digo...”, Jesus está justamente apontando que seguir cegamente o preceito sem levar em consideração seu princípio é errado. Os judeus tinham uma gama enorme de leis adicionais para tornar a vida mais pesada com a suposta prerrogativa de que isso dificultaria o descumprimento do preceito. Mas isso acabou levando a um acréscimo muito grande da lei que tornava a vida dos judeus um fardo. Adiante:

 

Por isso, e muito mais, foi chamado de beberrão, herege e endemoninhado. Quem o tratou assim? essencialmente Escribas e fariseus, os donos das Sagradas Letras.

Quem se acha dono das Escrituras quer o direito exclusivo de interpretá-las e dizer o que é certo e errado na interpretação dos outros, usando isto, inconscientemente, ou não, como ferramenta de controle sobre o povo.

Jesus também ressignificou/atualizou/ampliou o sentido de discipulado e de família: Deixar pai e mãe e tomar sua cruz, no primeiro caso. Família (pai, mãe e irmã), como sendo todo aquele que faz a vontade do Pai.

 

E Jesus usou justamente uma boa exegese e uma boa teologia para responder aos Escrivas e Fariseus. Ele não foi contra eles por serem interpretes das Escrituras, mas sim por serem interpretes ruins e se importarem apenas em usar seus cargos de “mestres” para parecerem mais santos.

O próximo parágrafo é risível e se aplica ao próprio autor: “Quem se acha dono das Escrituras quer o direito de atualizá-las e dizer o que é certo e errado na interpretação de acordo com seu tempo, usando isto, inconscientemente, ou não, como ferramenta de controle sobre o povo.”

 

Em seguida (meu Deus do céu) ele diz:

 

E andou sempre assim: na contramão, rompendo, até ser crucificado por conspiração deles em nome da ortodoxia deles.

Mas a ressurreição ATUALIZOU o Gênesis: "Haja luz! E Houve luz." 

E no Novo Testamento tem alguma coisa mais que precisa ser atualizada?

Quem acha que não, deve imediatamente:

1. Vender tudo que tem, dar o dinheiro todo aos pobres e passar a viver e andar como Francisco, não necessariamente o de Roma, o de Assis.

2. Não considerar como seu nada que possuir, mas compartilhar com a igreja/comunidade tudo, absolutamente tudo o que for seu (Atos 4:32-33);

3. Vender tudo que tem - "terras ou casas" - e entregar o dinheiro da venda aos líderes, no caso, apóstolos. Ops! Atualizo o termo para pastores (At. 4:34-35);

4. Cair duro na hora, se descoberto retendo parte do dinheiro da venda (atualizando: dízimo) como foi o caso de Ananias e Safira (At. 5);

5. Se divorciado, ficar sozinho(a) para o resto da vida, a não ser "por causa de adultério." Se for pastor, eliminar todos os divorciados recasados.

6. Se, por acaso, tomar um tapa na cara, deve virar a outra face; emprestar sem pestanejar; dar a qualquer que lhe pedir ou quiser tomar seus pertences... (Mt. 5)

7. Sujeitar-se a toda e qualquer autoridade governamental - isso implica em não fazer chacota nas redes sociais -  mesmo que o governo seja petista, facista, trumpista ou comunista. Sujeicão plena, diz a letra de Romanos 13:1.

8. Não comprar nada a crédito: "Não devam nada a ninguém" (Rm. 13:8). Comece rasgando todos os cartōes! 

 

Aqui, na maioria dos textos citados, o autor comete outro erro de hermenêutica bem simples: confunde prescrição com descrição. Não é porque o livro de Atos descreve os cristãos fazendo algo que Lucas está mandando fazer. E mais, tome como exemplo o texto de Atos 2, onde aparece pela primeira vez o caso de “vender propriedades e bens” (At 2.45). É meio óbvio que eles não vendiam tudo o que tinham, pois no próprio versículo seguinte é dito que eles “partiam o pão em suas casas”.

O texto de Mateus 5 é no contexto de perseguição, não a qualquer momento (olha o princípio sendo aplicado em diferentes circunstâncias, não é mesmo?).

O autor desse texto realmente -realmente- acha que Paulo, em Romanos 13, está falando que o cristão deve sujeitar-se ao governo em um contexto onde o governo age de forma contrária à Palavra de Deus???

A seguir...

Se você é do gênero feminino: (I Cor 11)

8.  Não orar com a cabeça descoberta;

9.  Não ensinar a homens;

10. Ficar calada na igreja

11.  Contentar-se com parir filhos

12. Não cortar o cabelo

Se você é macho (I Cor 11):

1. Não pode orar com a cabeça coberta

2. Não pode ter cabelo comprido

3. Não permitir que a mulher ensine (I Tm. 2:12);

 

De novo, preceito e princípio. Paulo está falando do princípio de honrar o marido, que, naquele contexto, era demonstrado cobrindo a cabeça. Mas, hoje em dia não é mais assim. “ARRÁ! BÍBLIA ATUALIZADA!” – Não, meu nobre desconhecedor dos fatos, é simplesmente o princípio citado por Paulo que continua ativo e sem nenhuma modificação. O resto do texto está a seguir e eu darei meus comentários finais logo abaixo:

 

E tudo por que: "O homem... é imagem e glória de Deus, mas a mulher é gloria do homem." E é? A mulher é só a glória do homem e nada de Deus?

E como fica a expressão: "Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus os criou; homem e mulher os criou" (Gn. 1: 27)?

Mas se a tradição ("...e por se apegarem às tradiçōes..."  I cor.  11:1) entra na Bíblia, a atualização teológica atualiza/ressignifica a tradição. No mesmo capítulo, diz o autor: "No Senhor, todavia, a mulher não é independente do homem, nem o homem independente da mulher (I Cor 11: 11; c.f. Gl. 3:28).

Mas há muito conteúdo na Bíblia que deveríamos seguir literalmente. Por exemplo:

"Portanto, deixemos de julgar uns aos outros..." (Rm. 14:13a);

"Aceitem uns aos outros da mesma forma que Cristo os aceitou" (Rm. 15:7a);

"Sejam agradecidos" (col. 3:15).

Portanto, na Bíblia:

Nem tudo é literal, mas também;

Nem tudo é simbólico, mas também;

Nem tudo é atualizável, mas também;

Nem tudo é racional, mas também;

Nem tudo é espiritual, mas também;

Nem tudo é cultura - judáica, grega ou romana - ressignificada ou reinterpretada - mas também;

Nem tudo é tradição, beduína ou farisáica, mas também...

Parafraseando lavoisier:

Na Bíblia tudo se cria, nada se perde, tudo se transforma, se ATUALIZA.

"Transformai-vos pela renovação da vossa mente." (Rm. 12:3)

Trans-formar-se é adquirir novas formas; e isto requer ATUALIZAÇÃO, necessariamente.

Foi assim que a Bíblia tratou a cultura...

É assim que o Espírito Santo trata a Bíblia, nos fazendo lembrar, com criatividade e espírito profético, o que Jesus ensinou: Os princípios do Reino de Deus que Paulo, mais tarde, sintetizou/atualizou para a igreja de Roma, como sendo  "justiça, paz e alegria no Espírito Santo" (Rm. 14:17b).

E o Espírito segue falando... Nesses termos.

"Quem tem ouvidos para ouvir, ouça."

Josias Bezerra Da Silva

 

Fica bem claro que o autor não tem um entendimento bíblico muito profundo. Mas vamos, pelo bem do argumento, assumir que seus pontos são de alguma relevância. Deveríamos concluir que o argumento dele é válido? Não. Sabe por que? Porque todos os exemplos usados por ele vêm do próprio Jesus (que supostamente atualizou a Bíblia) e de autores inspirados por Deus. Eles vêm de quem pode, não de um pastor liberal.



[1] MACARTHUR, John. Manual bíblico MacArthur: uma meticulosa pesquisa da Bíblia, livro a livro, elaborada por um dos maiores teólogos da atualidade, 1. Ed., Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2015, p. 38.

[2] MACDOWELL, John; HOSTETLER, Bob. Certo ou errado?, São Paulo: Editora Candeia, 1997, p. 120.

[3] COPAN, Paul. Is God a moral monster? Grand Rapids, MI: Baker Books, 2012, p. 70

[4] Ibid. p. 74.

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