segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Como a filosofia nos ajuda contra o legalismo (e crendices bobas)



Aaaaand... we’re back.
Através dos anos, vi muitos cristãos fazendo apelos contra certas atitudes ou a favor de certos rituais com o pretexto de que estes possuíam algum valor “espiritual”. Porém, além da Bíblia não exigir tais atos ou proibir certas coisas, esses cristãos ficaram em uma postura legalista, dizendo que devemos nos abster de tais coisas para não chamar Satanás ou fazer tal coisa para Deus nos abençoar mais. Mas é por isso que Deus, pela sua graça, nos possibilitou usar da boa filosofia. Não a “vã filosofia” que Paulo alerta contra, mas sim a boa filosofia. A Bíblia em momento algum é contra a filosofia, apenas contra filosofias que contradizem o que a Escritura nos ensina (eu escrevi um artigo sobre isso no Acrópole da FéCristã).

Em todo caso, como a filosofia pode nos ajudar? Bom, antes de entendermos isso, veja o exemplo clássico do legalismo anos 90/2000: Mister Satan. Esse era um personagem da famosa série Dragon Ball Z/GT e agora do Super que era conhecido como o campeão de artes marciais. Muitas crianças ficavam assustadas, pois em geral seus pais entravam no quarto quando as pessoas gritavam “Satan! Satan! Satan!” durante suas lutas. Outras falas seriam como “Satan, salvou o mundo do Cell!” e etc. Entretanto, devemos nos questionar: esse desenho era satânico por causa disso? As crianças estavam invocando o Mochila de Criança quando assistiam?*
Para responder a isso, devemos entender o que é um portador de verdade. Um portador de verdade é aquilo que deve corresponder a um Truth-Maker para ser verdade. Então, por exemplo, quando eu digo “a neve é branca”, isso é verdade se a neve for branca. Porém, o portador de verdade não é a sentença ou o enunciado “a neve é branca”, mas sim seu conteúdo proposicional. Se eu digo “a neve é branca”, “la nieve es branca” e “snow is white”, eu tenho três enunciados diferentes, mas o mesmo conteúdo proposicional. E é esse conteúdo que é o portador de verdade, enquanto o Truth-Maker é o fato de a neve ser branca. (Eu escrevi sobre isso também no AFC, aqui, aqui e aqui)
Palavras também carregam sentidos diferentes dependendo do seu contexto linguístico e seu contexto pragmático. Se eu digo “a vela do barco” e “acenda a vela” eu usei a mesma palavra, mas em contextos diferentes. Esses contextos diferentes mudam o sentido daquilo que eu estou dizendo. Além disso, a minha intenção também muda o sentido da frase. Se uma pessoa ler minha frase, “a vela do barco”, e entender que havia uma vela de cera acesa no barco, ela estará errada, pois eu quis dizer a vela do mastro que é levantada. A interpretação correta de uma frase não depende da ambiguidade das palavras e da perspectiva do leitor, mas sim daquele que escreveu ou falou a frase e de sua intenção.
Um cristão deve concordar com isso, pois se dissermos que o portador de verdade é a sentença ou o enunciado, dada a ambiguidade das palavras e a mutabilidade da linguagem, então a verdade é relativa. Além disso, se a interpretação depender do interprete e não do autor, a verdade também é relativa, pois a interpretação do interprete é a “verdade” dele.
Felizmente, o conteúdo proposicional é um melhor candidato para portador de verdade do que enunciados e sentenças. Alias, é justamente por isso que podemos ler uma Bíblia traduzida e não ter que necessariamente aprender o Hebraico, Aramaico e o Grego.
Fora isso, o último ponto, sobre a interpretação depender do interprete e não do autor, também encontra uma objeção insuperável. Se a interpretação correta depende do interprete, então eu, como interprete da sentença “a interpretação depende do interprete” posso interpreta-la de modo totalmente contrário ao que está escrito (“a interpretação depende do autor”). Sendo assim, é um posicionamento auto-refutável.
Mas o que tudo isso tem a ver com o Mister Satan? Bom, fica claro que a intenção das crianças, adolescentes e adultos ao falar do Mister Satan não é a de invocar o capiroto. Mesmo se a do criador do desenho for. Por mais que ele tenha essa intenção (o que eu duvido que seja o caso), quando uma pessoa assiste ao desenho ela não tem essa intenção. E mesmo se a interpretação do telespectador estiver errada, ainda assim ele não está chamando o Homem do Saco, pois ele não possui essa intenção. Além disso, nos Estados Unidos o nome dele foi trocado para Hercule, e muitos que assistiam nem sabiam do nome original. Teríamos que concluir que ele é uma manifestação do Pé de Cabra em outros lugares, mas não nos EUA? E mesmo se o fã souber que Hercule originalmente era Mr. Satan, ou se um brasileiro souber do nome similar ao do Tinhoso, isso não significa que esteja havendo uma manifestação das trevas ali. Afinal, eu também sei dos dois significados da palavra "vela", mas se eu falo com uma intenção, sabendo da outra, não significa que eu esteja invocando essa outra.
Dado o fato que a linguagem é uma convenção humana e está sob constante mudança, não se pode dizer que ela porta uma verdade ou que podem ser usadas para determinadas coisas se a intenção do autor da formulação linguística não estiver de acordo com essas coisas. Afinal, muitas pessoas na própria igreja oram, mas suas orações são vazias. O próprio Jesus alertou contra a aparência dos lideres religiosos, pois faziam longas orações, aparentando estar falando com Deus, mas na verdade buscavam a glória para si mesmos (Mateus 6:5-8). Ou seja, a intenção do coração é a que importa.
Saber disso também nos ajuda a refutar seitas bizarras, como os que aderem ao nome Yehoshua ao invés de Jesus, pois creem que Jesus seja um nome pagão. Se meu irmão me chama Felipe e você me chama de Phillip, estão falando exatamente da mesma pessoa, mas com palavras diferentes. Mas a intenção demonstra que é a mesma pessoa. Desse modo, a linguagem pouco importa, desde que o conteúdo dela tenha o propósito certo.
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Que Deus os abençoe e até mais!

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* Eu realmente nunca entendi o que tinham contra Dragon Ball por causa disso. Mr. Satan era um personagem patético, fraco e que ficou popular mentindo. Seria uma ótima sátira do Coisa Ruim.

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