Recentemente criei uma nova página no Wordpress e estou postando coisas por lá.
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POR QUE A APOLOGÉTICA DE TERRA JOVEM É
INÚTIL?
“Inútil” – talvez a sua primeira reação
ao ler o título deste post seja que a palavra escolhida para caracterizar a
apologética de terra jovem seja muito forte. E talvez seja mesmo. Mas, o fato
dela ser forte não a desqualifica para o caso em questão. A apologética de
terra jovem é inútil.
Para ser claro, é preciso fazer uma distinção
aqui: por “apologética de terra jovem”, me refiro ao que normalmente é chamada
de “ciência criacionista” – a tentativa de reconciliar a ciência com a interpretação
literalista e concordista[1] do texto de Gênesis 1-11,
com todas as suas peculiaridades: a negação da efetividade dos métodos de
datação, a geologia diluviana, apelo ao mistério (“Deus colocou a luz do jeito
que a vemos e isso não prova um universo antigo, isso é algo que não sabemos
explicar”) etc.[2]
Repare, no entanto, que isso não tem absolutamente nada a ver com o Design
Inteligente. O DI é aceito tanto por criacionistas de terra jovem quanto de
terra antiga[3]
e, pasme, até alguns teístas evolucionistas[4].
Mas então, por que a apologética de terra
jovem é inútil? Por vários motivos, os quais listarei abaixo:
1. Ela
visa provar uma terra jovem... mas e ai?
Pense nisso por um instante: suponha que
se consiga provar que a terra tem 6.000 anos. Se provou que os métodos de
datação não são tão confiáveis para idades longas, que um grande dilúvio
ocorreu e que o big bang é uma mentira. Ok, e ai?
Isso prova que Deus existe? Não.
Isso aumenta a probabilidade da
existência de Deus? Não.
Isso mostra que Jesus é Deus? Não.
Isso aumenta a probabilidade da
ressurreição de Jesus? Não.
Isso aumenta a confiabilidade na Bíblia?
Não.
Ou seja, não existe absolutamente nenhum benefício apologético vindo da “apologética de terra jovem”. Ela absolutamente não serve para nada.
2. Ela não prova nem a interpretação literalista e concordista de Gênesis
Ligado ao primeiro ponto, muitos usam a “ciência
criacionista” como forma de validar uma interpretação literalista e concordista
de Gênesis. Chamada de “interpretação literal” – que vê os dias de Gênesis como
literais, além das idades dos patriarcas como literais e sem lacunas – ela é
vista como a “verdade bíblica” e o criacionismo de terra jovem é, muitas vezes,
chamado de “criacionismo bíblico” por conta do peso retórico que o termo “bíblico”
acrescenta ao discurso.
Mas mesmo se for provado que o mundo tem
6.000 anos, ainda não se provou que essa interpretação está correta. A
interpretação funcional de John Walton é compatível com uma terra jovem. Walton
diz: “O ponto não é que o texto bíblico, portanto, dê suporte à uma
terra antiga, mas simplesmente que não existe uma posição bíblica sobre a idade
da terra. Se fosse o caso de a terra ser jovem, tanto faz.” [5]
A interpretação alegórica também é
compatível com uma terra jovem. Aliás, até mesmo a interpretação dia-era é
compatível com uma terra jovem! Muitos pais da igreja, por exemplo, acreditavam
que o mundo tinha de 6.000 a 7.000 anos por crerem que os dias não eram
literais, mas sim eras milenares. [6] Ou seja, nem como “aval
hermenêutico” a apologética de terra jovem serve, pois múltiplas interpretações
bíblicas são compatíveis com uma idade recente da criação.[7]
3. Ela não prova a veracidade do relato bíblico.
Suponha que o dilúvio global seja
provado. Por conta dele, a geologia deve pressupor ele para a datação. Certo. A
partir disso, se provou que o mundo é jovem. Muito bem. Ainda assim, não se
provou o relato bíblico. Por que? Porque o dilúvio aparece em outros textos
religiosos antigos, como o épico de Gilgamesh. Ou seja, outros textos sagrados
seriam validados pela geologia diluviana.
4. Ela invalida evidências para argumentos da teologia natural
A ciência de terra jovem, por negar o
Big Bang invalida uma das evidências científicas mais fortes a favor de premissas
chave em argumentos a favor da existência de Deus. No argumento cosmológico kalam,
a premissa 2 do argumento diz que “o universo começou a existir”. Uma das
evidências mais fortes para a verdade dessa premissa é justamente a cosmologia
e a teoria do Big Bang. De fato, quando descoberto, foi reconhecido que o Big
Bang favorecia o teísmo, não o naturalismo. Como diz Christopher Isham:
Talvez o
melhor argumento em favor da tese de que o Big Bang é favorável ao teísmo seja
o óbvio desgosto pelo qual ele é recebido por alguns físicos ateus. Às vezes
isso leva à ideias cientificas [...] que avançam com uma tenacidade que excede
seu valor intrínseco, de modo que só podemos suspeitar que seja uma operação de
forças psicológicas muito mais profundas do que o desejo acadêmico normal de um
teorista em favor de sua teoria.[8]
E Stephen Hawking disse: “Muitos não
gostam da ideia de que o tempo teve um início, provavelmente porque isso cheira
a intervenção divina [...] Por isso, houve uma série de tentativas para evitar
a conclusão de que um Big Bang tenha ocorrido.”[9] Esse desgosto por parte
dos não-teístas mostra que a negação ao Big Bang parte de uma espécie de naturalismo
metodológico, que visa validar apenas explicações que se restringem ao mundo
natural.[10]
Além disso, o Big Bang como evento de
criação fornece uma das evidências mais fortes do ajuste fino do universo, que
é a sua baixa entropia inicial (o universo começou altamente ordenado,
apesar do que dizem por ai[11]). Como diz o cosmólogo
Sean Carroll: “Se o universo que nós vemos realmente é tudo o que existe, com o
Big Bang sendo um início em baixa entropia, então parece que estamos presos em
um desconfortável problema de ajuste fino”.[12]
Conclusão
Em suma, a apologética de terra jovem é,
além de inútil, uma pedra no caminho da teologia natural. Ela não chega à
conclusão alguma a favor do teísmo cristão e enfraquece argumentos a favor
dele. No fim, assim como o terraplanismo, a apologética de terra jovem serve
meramente de instrumento para ridicularizar o cristianismo e dar mal testemunho
frente à população por meio de conspiracionismo e negacionismo.
[1] “Concordismo” é a visão hermenêutica
que tenta fazer o texto bíblico concordar com a ciência moderna. Cf. SODEN,
John. “Concordismo”, In: Dicionário de Cristianismo e Ciência. São
Paulo: Thomas Nelson Brasil, 2018, p. 264. Edição do Kindle.
[2] A geologia do dilúvio (ou geologia
diluviana) é parte importante da “ciência criacionista”. Cf. LOURENÇO, Adauto. Gênesis
1 e 2: a mão de Deus na criação, São José dos Campos, SP: Editora Fiel,
2018, p. 95.
[3] Pessoas como Hugh Ross, John Lennox e
Fuz Rana defendem o design biológico como evidência de um Designer Inteligente.
Cf. LENNOX, John. Cosmic Chemistry: do God and science mix?, 2º
ed., London: Lion Books, 2021.
[4] Michael Behe, por exemplo, que é um dos
maiores defensores do Design Inteligente da atualidade admite que ele crê na
descendência comum dos seres vivos (DISCOVERY SCIENCE, Michael Behe Answers
Hard Questions: What do you think of the idea of common descent?¸ 26 de
Nov. 2019. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=zvS7t-Buwik>;
acesso 28 de Mar. 2023.)
[5] WALTON, John. The lost world of genesis one: ancient
cosmology and the origins debate, Downers Grove: InterVarsity Press, 2009, p.
94.
[6] GORDON, Bruce. Scandal of the
Evangelical Mind: A Biblical and Scientific Critique of Young-Earth
Creationism, Science, Religion and Culture, ISSN 2055-222X, Vol. 1, Nº
3, pp. 144-173, 13 de Out. 2014. Disponível
em <https://researcherslinks.com/current-issues/Scandal-of-the-Evangelical-Mind-A-Biblical-and-Scientific-Critique-of-Young-Earth-Creationism/9/5/43>;
Acesso 09 de Abr. 2021.
[7] Contrário à crença popular, interpretações
não-terra jovem de Gênesis não surgiram para acomodar a ciência moderna ao
relato bíblico. Como dito na nota anterior, os pais da igreja enxergavam os
dias como eras milenares. Agostinho entendia que a humanidade era “jovem”, mas
que a criação em si poderia ser muito antiga (ORTLUNG, Gavin R. Retrieving
Augustine’s doctrine of creation: ancient wisdom for current controversy,
Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 2020, p. 120-121).
[8] Apud. CRAIG, William Lane. “The ultimate question of origins: God
and the beginning of the universe”. Astrophysics
and space, ISSN: 1572-946X, v. 269, p. 728, 1999. Disponível em <https://doi.org/10.1023/A:1017083700096>;
Acesso 16 set. 2020
[9] HAWKING, Stephen. Uma
breve história do tempo,
Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015, p. 65. Edição ePub
[10] ERASMUS, Jacobus. The kalam
cosmological argument: a reassessment, Cham, Switzerland: Springer
International Publishing, 2018, p. 131.
[11] Cf. LOURENÇO, Adauto. Como tudo
começou: Uma introdução ao criacionismo bíblico, São José dos Campos, SP:
Editora Fiel, 2007, p. 91.
[12] CARROLL, Sean. From
Eternity to Here: the quest for the ultimate theory of time, Nova
Iorque: Dutton, 2010, p. 343. Edição
ePub.
Nosso
querido pastor youtuber está de volta. Não que ele tenha ido pra muito longe ou
parado de falar coisas altamente pertinentes, mas pelo efeito dramático e
igualmente humorístico no tom do começo do texto, achei interessante anunciar dessa
maneira as grandes “contribuições” de Rodrigo Mocellin.
Em seu
último vídeo, intitulado Por que a psicologia é anticristã?, Mocellin ataca novamente a psicologia (ou psiquiatria, nem ele mesmo parece saber). O que surpreende
dessa vez é que, diferente de seus últimos 1000 vídeos sobre o assunto, ele não
recicla o mesmo material quote-mined (pelo menos, não o vídeo inteiro).
Talvez
você pense que não devemos dar “palco” para um “maluco” desses. E eu
concordaria em circunstâncias normais. Mas, é a saúde e a espiritualidade das
pessoas que está em jogo. Além disso, essa é uma ótima oportunidade pra ensinar
lógica e algo sobre a Bíblia.
Para a
surpresa de um total de 0 pessoas, Mocellin começa seu vídeo falando como ele “mexeu
com o bezerro de ouro” de muitos pastores. Novamente, para a surpresa de vários
ninguéns, ele começa com seu jogo de retórica do medo, colocando na mente de
quem o segue que a psicologia é uma espécie de ídolo, e que apenas ele está do
lado de Deus. Esse jogo psicológico manipulativo continua por todo e
vídeo e está presente em todos os seus vídeos sobre o assunto.
Pelo
bem do argumento, no último texto eu concedi a falsa equivalência entre
psicologia e psiquiatria que ele faz. Mas, pensando agora, parece que ele realmente
não sabe que são disciplinas distintas.
De todo modo, ele começa o vídeo citando John MacArthur. MacArthur talvez tenha algum valor teológico (embora eu ache que, como pastor e apologeta, ele não tem grande contribuição). A citação é a mesma que ele faz no seu Twitter:
“A
pressa em adotar a psicologia dentro da Igreja é, francamente, incompreensível.
A psicologia e o cristianismo têm sido inimigos desde o início” (J. Macarthur-
Introdução ao Aconselhamento Bíblico)
Em
seguida, ele cita Leonardo Abrahão, que diz que embora exista psicóloga cristã,
não existe “psicologia cristã”.
Aqui
nós vemos a visão dicotômica que Mocellin tem da realidade (fruto de seu "pressuposicionalismo" extremo): ele acha que pra algo ter uma verdade compatível
com a fé cristã e a Bíblia, esse algo deve ter como pressuposto algo que está
na Bíblia – qualquer coisa fora disso é “secular” e contradiz o cristianismo.
Talvez
o maior problema dessa visão seja seu pressuposto de que a Bíblia tem que
responder a todas as questões do mundo. Acredite, ela não tem que fazer isso e
não faz. A Bíblia não responde a grande parte das perguntas da experiência
humana – ela não fala sobre questões gastronômicas, científicas modernas, filosofias
modernas, tecnológicas, bioquímicas etc. Mas é possível partir da Bíblia
para executar alguma dessas disciplinas? Talvez algumas sim, mas outras com certeza
não. Considere a gastronomia como exemplo. A gastronomia depende de uma ciência
natural que eu garanto que não dá a mínima para os “pressupostos cristãos”: a
química. Existe químico e gastrônomo cristão? Existe. Sabe o que não existe? ->
química e gastronomia cristãs.
Não
existe veganismo cristão, flamenguismo cristão, cardiologia cristã, sotaque
cristão, oftalmologia cristã, ateísmo cristão e nem odontologia cristã. Nem por
isso Mocellin deixa de ter um sotaque, ou de consultar oftalmologista e
odontologista, ou de ir à um bom restaurante.
Sabe o
que faz com que Mocellin não vá contra nenhuma dessas disciplinas, embora
nenhuma delas tenha “pressupostos cristãos”? O fato de que ele sabe que uma disciplina
não precisa, necessariamente, ter uma “abordagem cristã”, ela precisa apenas não
contradizer a fé cristã. O jogo retórico do argumento dele é justamente usado
para que o seu espectador concorde com ele (e, talvez, eventualmente compre seu
curso miraculoso).
Após
tudo isso, Mocellin fala sobre como a Bíblia e a psicologia são opostas, pois
ambas tratam do comportamento humano. O ponto que ele tenta fazer aqui é o de
dizer que há uma dicotomia aqui: ou você trata o comportamento humano com a
Bíblia ou com a psicologia ateísta.
Novamente,
é uma visão antagônica equivocada. Suponha, por exemplo, que Rodney Mucillon
(nome fictício) tenha problemas com compulsão à mentira. Ele, então, pede
aconselhamento pastoral. Durante esse aconselhamento, o pastor não fala apenas
da Bíblia, mas também de experiências pessoais, questões éticas e dá conselhos,
os quais, embora alguns baseados na Bíblia, outros vêm da experiência social
humana dele mesmo como indivíduo. Será que Mucillon teria que escolher entre a
Bíblia ou o aconselhamento pastoral? Já que a Bíblia diz que o novo homem deve
abandonar a mentira (Efésios 4.22-25), não seria ela o bastante para lidar com
isso?
Nesse
exemplo, vemos o grande problema do argumento de Mocellin: a Bíblia diz o que é
errado e o indivíduo toma consciência disso, mas ela não diz como ele
deve buscar a melhora. O Espírito Santo pode guiar o caminho, assim como a
oração pode fazer parte do processo, mas isso não significa que outros métodos que
não anulem estes não possam ser usados.
Se
esse tipo de argumento fosse levado a sério, imagine como ficariam disciplinas
como a ética filosófica e o direito. O direito teria que ser anulado, pois a
Bíblia diz que quem faz justiça é Deus, não os homens em um tribunal. Porque,
afinal, existem advogados e juízes cristãos, mas não existe advocacia cristã,
não é mesmo?
Sobre
ética, imagine se não pudéssemos seguir certos aspectos de teorias ético-normativas,
como a ética deontológica ou ética de valor. A propósito, Michael Jones tem um vídeo apenas demonstrando
como o Novo Testamento usou conceitos da ética aristotélica.
Falando
em ética, Mocellin fala sobre problemas morais, os quais ele diz serem o mesmo
que “pecado”. Ele questiona “Qual abordagem da psicologia receita ou recomenda
Cristo como o único solucionador de nossos problemas morais?”. Deixando de lado
toda a discussão do significado de “pecado” (que é mais abrangente do que simplesmente
um “erro moral”), se fossemos seguir o argumento de Mocellin às últimas
consequências nós teríamos que dizer que é impossível um ateu ter qualquer comportamento
moral. Porque ele nunca seria corrigido pela Bíblia (a não ser que se
convertesse).
O
grande problema de Mocellin é achar que a abordagem bíblica é restrita apenas a
algum tipo de ação sobrenatural mágica. O que eu quero dizer com isso? Para
ilustrar, é como se houvesse algum “poder” dentro do ser humano que age mudando
internamente a sua alma com alguma espécie de energia divina. Essa não é a
visão bíblica do sobrenatural.
Para
os autores bíblicos, o mundo natural simplesmente “não existe” – tudo é
sobrenatural. Como John Walton explica:
... não existe o conceito
de um mundo “natural” no pensamento do antigo Oriente Próximo. A dicotomia
entre o natural e o sobrenatural é relativamente recente.
[...]
Nada acontecia
independente da divindade. [...] Os israelitas, assim como todo mundo no mundo
antigo, criam [...] que todo evento era um ato da divindade – toda planta que
crescia, todo bebê que nascia, toda gota de chuva e todo desastre natural eram
atos de Deus. Nenhuma lei “natural” governava o cosmos; a divindade ordenava o
cosmos ou era inerente a ele. Não havia “milagres” (no sentido de eventos que
fogem daquilo que é “natural”), havia apenas sinais da atividade divina...[1]
Apesar
da divisão entre natural e sobrenatural ser recente e útil para nossa
sistematização da realidade (além de sabermos, certamente, que leis naturais existem,
diferente do que os antigos acreditavam), há um princípio importante que pode
ser aplicado aqui: Deus age por meio do natural, não aparte
dele. A ideia é como a de um programador de jogos online: você pode estar jogando
no mundo virtual, mas o programador pode realizar atos virtuais por meio da
realidade digital para interagir com a vida do seu personagem.
Mocellin
cita o Salmo 19.7a, que diz que “A lei do senhor é perfeita e restaura a alma”
(ARA). Para um completo entendimento desse versículo, vamos dar uma olhada...
isso mesmo! Nele inteiro e no versículo seguinte, já que parece ser um caso de paralelismo
sinonímico. O que é um paralelismo sinonímico, você pergunta? Gordon Fee e
Douglas Stuart explicam que nesse tipo de paralelismo, a “segunda linha, ou a
linha subsequente, repete ou reforça o sentido da primeira linha...”[2]
Um bom
exemplo de paralelismo sinonímico é... justamente o primeiro versículo do Salmo
19:
Os
céus
proclamam a glória de Deus,
e
o firmamento anuncia as obras das suas mãos.
Perceba
como a segunda linha explica exatamente a ideia da primeira, mas com outras
palavras. O mesmo acontece no texto usado por Mocellin:
A
lei do Senhor é perfeita e restaura a alma; o testemunho do
Senhor é fiel e dá sabedoria aos símplices.
Os
preceitos do Senhor são retos e alegram o coração; o mandamento
do Senhor é puro e ilumina os olhos.
Observe que “restaura a alma” está em paralelo com “alegram o coração”. Por quê? Porque
o que o autor está falando é de uma restauração como metáfora para a
alegria trazida pela obediência aos mandamentos de Deus. Isso porque, como ocorre na teologia verotestamentária,
a benção e a maldição estão ligadas estritamente à obediência e à rebeldia (cf.
Lv 26; Dt 32). Assim, o texto não fala sobre um tipo de “super alegria”, no
sentido de cura como Mocellin deduz, mas sim de ter uma vida alegre na presença
de Deus. Essa alegria estava ligada às posses, gado e coisas do tipo. Não é uma
teologia da prosperidade, mas sim uma promessa de aliança que fazia sentido na
relação de Deus com os autores do Antigo Testamento – não haveria maldição
sobre o gado e as posses deles se seguissem a Deus.
Depois
disso, ele fala, citando Dave Hunt, sobre a psicologia não ser ciência, pois se
baseia no subjetivo e não no objetivo. Meu amigo Acrizio Souza deu uma boa
resposta a esse ponto:
...citando Dave Hunt, ele
volta ao ponto de que a psicologia não pode ser considerada uma ciência pois
ela aparentemente lidaria com aspectos subjetivos, não analisáveis por
ferramentas científicas. O problema é que essa afirmação é falsa. Apesar do
elemento subjetivo que há no ser humano, existem vários aspectos objetivos em
nossa natureza. Aspectos como seleção sexual, capacidade cognitiva, escolhas
morais e tendências a aderir certos comportamentos são elementos objetivos,
moldados por fatores como raça, etnia, localização geográfica, influência
genética e do ambiente, e todos esses fatores possuem dados que são coletados e
analisados por psicólogos profissionais. A psicologia depende cada vez mais de
análises estatísticas e análise de dados. Isso pode ser visto no fato de
existir uma área chamada “Estatística Psicológica”, que se trata da aplicação
de fórmulas matemáticas no estudo da mente e comportamento humano.[3]
(É
também válido falar que o Modellin muitas vezes se vale de críticas à
psiquiatria pra criticar a psicologia, o que mostra ignorância ou desonestidade.)
Ele
então parte para o argumento de que podemos ir ao médico porque a Bíblia não é
um livro de ciências “embora ela esteja certa cientificamente”, mas deixou claras
as instruções de como lidar com depressão, rebeldia adolescente etc.
Adoraria saber onde estão essas instruções. Mas, independente disso, ele diz que o ateísmo de um psicólogo o faz ver o ser humano como um “acúmulo de átomos”. Ele repete esse ponto em seu Twitter:
Claro
que são antagônicos. A psicologia é essencialmente ateísta. Para ela, a única
coisa que existe é a matéria. “A ideia de uma alma imaterial que controla o
corpo não tem lugar na ciência” (Donald Herb).
Novamente,
o argumento como um todo é frágil. O fato de um ateu ver o ser humano como apenas
um acúmulo de células não diz absolutamente nada sobre ele não poder tratar
essa parte física do ser humano.
Considere
como exemplo essa adaptação da ilustração de John Lennox sobre os carros e o
criador do motor: por mais que eu estude tudo sobre o motor de um carro e saiba
tudo sobre as leis de combustão, isso não me permite aferir que não há um designer
do motor - Mesmo se eu acreditar que apenas o motor existe. Esse é um
ponto importante: o fato de uma pessoa crer (em uma situação imaginária, pelo
amor de Deus!) que apenas o motor e as leis da combustão existem, e trabalhar no
carro sob essa perspectiva não o desqualifica como técnico e muito menos faz
com que suas crenças estejam erradas. Similarmente, um indivíduo que crê que o
ser humano é apenas um ser físico não desqualifica seu trabalho, sua área de
estudo, sua prática etc.
De
fato, a parte física do ser humano tem que ser levada em consideração. Na questão
da relação mente-corpo, muitas vezes a mente é vista como uma substância aparte
que necessita que o cérebro funcione normalmente para que o indivíduo consiga “funcionar”
de modo adequado. Essa causalidade é vista constantemente na interação entre
corpo e mente. Como William Lane Craig e J. P. Moreland explicam:
No caso da mente e do
corpo, estamos constantemente conscientes da causalidade entre eles. Eventos no
corpo ou no cérebro (ser espetado por um alfinete, sofrer um ferimento na cabeça)
podem causar sensações na alma (um sentimento de dor, perda de memória), e a
alma pode provocar sensações no corpo (a preocupação pode causar úlceras, a
pessoa pode livre e intencionalmente levantar o seu braço). Temos, dessa
maneira, evidência incontestável de que a interação causal acontece, não
havendo nenhuma razão suficiente para duvidar disso.[4]
De
fato, como Paul Ekman bem apresentou, expressões faciais podem nos dar avais
epistêmicos de estados mentais, como tristeza, raiva, alegria, desprezo e medo.
Como Vitor Santos explica: “hoje em dia muitos pesquisadores no campo das
emoções entendem as microexpressões faciais como mais um tipo de resposta
desencadeada por estímulos emocionais e que pode sinalizar alterações no estado
afetivo.”[5]
A
próxima parte do vídeo eu não vejo muito o que comentar, já que é só uma
questão do que o psicólogo pode ou não fazer. Mas ele diz o seguinte: quando um
psicólogo encontra um paciente homossexual, ele nega sua fé ou nega a
psicologia? Visto que o psicólogo, mesmo sendo cristão, não poderia tratar a
homossexualidade de seu paciente. A isso, Acrizio responde:
Mesmo que ele queira
permanecer em seus atos, um psicólogo cristão que entende que o relacionamento
homossexual seja pecaminoso pode auxiliá-lo a viver uma vida digna dentro de
suas crenças. Se isso não pudesse ser feito, cristão nenhum deveria estar na
Terra, pois no dia-a-dia temos de lidar com pessoas que vivem vidas longe dos
mandamentos de Deus e que precisam de ajudas nossas. Nossa reprovação a certas
práticas não nos impede de ajudá-las em determinados momentos e situações de
suas vidas. É difícil, porém, enquanto estivermos neste mundo, temos de lidar
com isso.[6]
Ele
cita Freud que chamou a religião de neurose, mas falha em perceber que Oskar Pfister,
um dos discípulos de Freud, era pastor e fez uma leitura cristã baseada no amor
à Deus da tese de Freud. Segundo Pfister, o amor ao próximo e o amor a Cristo
anula qualquer opressão causada pela moralidade cristã que Freud havia
postulado.[7]
A
próxima frase dele diz que as igrejas liberais “que acreditavam que a Bíblia
não era suficiente” precisavam de algo a mais. Diga-me que você não sabe o que
é liberalismo sem me dizer que você não sabe o que é liberalismo!
(Alguns
minutos do vídeo são meio irrelevantes, pois já comentei aqui e no outro texto.
Apenas lembremos que, para seguir os conselhos de Mocellin, teríamos que deixar
de comer miojo. Afinal, a Bíblia é completamente insuficiente para a
preparação de um miojo.)
[1] WALTON, John. The lost world of
genesis one: ancient cosmology and the origins debate, Downers Grove, IL: InterVarsity
Press, 2009, p. 18
[2]
FEE, Gordon; STUART, Douglas. Entendes o que lês?: um guia para entender
a Bíblia com auxílio da exegese e da hermenêutica, São Paulo: Vida Nova, 2011,
p. 238.
[3]
Comentário feito em publicação no Facebook. Disponível em <https://www.facebook.com/acrizio.desouza/posts/pfbid08Pq5oS1SUWWxcWAxSjiWFXBuCYtYDJnZ9Q3s4eD8tudvADdXeMzL29PZFd5qCkPtl>;
Acesso 22 de dez. 2022.
[4]
CRAIG, William Lane; MORELAND, J. P. Filosofia e cosmovisão cristã, São
Paulo: Vida Nova, 2005, p. 305.
[5] SANTOS,
Vitor. Linguagem corporal: guia prático para analisar e interpretar
pessoas, São Paulo: Fontanar, 2022, p. 17 (Edição ePub)
[6] Comentário
feito em publicação no Facebook. Disponível em <https://www.facebook.com/acrizio.desouza/posts/pfbid08Pq5oS1SUWWxcWAxSjiWFXBuCYtYDJnZ9Q3s4eD8tudvADdXeMzL29PZFd5qCkPtl>;
Acesso 22 de dez. 2022.
[7] VELIQ, Fabiano. “Oskar Pfister e a crítica à concepção freudiana da religião”. Fractal: Revista de Psicologia, ISSN 1984-0292. Belo Horizonte, MG, v. 30, n. 2, p. 161-165. Mai-ago. 2018. Disponível em <https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/dissertatio/article/view/10450>. Acesso 22 de Dez. 2022.
Pastor Rodrigo Mocellin “dá lição” na psicologia. Será que ele acertou?
Há um curioso entrelaçar de eventos em minha vida atualmente. Ao mesmo tempo em que eu tenho praticamente dois empregos (um fixo e um como freelancer), também estou escrevendo meu TCC. Meu TCC é sobre Gênesis 1-11 e a compatibilidade do texto com uma criação antiga e a evolução. Esse tema não deve surpreender muito os leitores de longa data. Ainda assim, em meu pouco tempo para escrever algo “a mais”, como um inimigo da neutralidade intelectual evangélica e do negacionismo científico (aquele que nega a ciência verdadeira com a “ciência ‘verdadeira’”), eu resolvi tirar uns minutos para ver o que o pastor youtuberRodrigo Mocellin diz sobre a psicologia. E, Gosh.... me surpreendeu.
Não deveria me surpreender. Afinal, existem cristãos que acham que a Terra é plana e que tem 6.000 anos. Também existem os que acham que cloroquina funciona contra Covid. Mas, o analfabetismo científico e bíblico em prol de uma “verdade” obscura-e-altamente-secreta-e-reveladora que pode ser “descoberta” por qualquer um com internet – que é a pedra fundamental de todo o conspiracionismo que vemos por aí – consegue se superar a cada dia.
Nesse texto, pretendo responder a algumas alegações do Pr. Rodrigo Mocellin a respeito da psicologia. Não só isso, mas também ‘desroupar” seu discurso da roupagem retórica de alguém “que vê de cima”, bem como mostrar suas falácias lógicas. Dois vídeos serão comentados:
“Psicóloga ‘dá lição’ em Isadora Pompeu” - https://youtu.be/-iW4rmYt74g
“Depressão é doença?” - https://youtu.be/TDTnvmkfWKw
Ao início de sua fala, Mocellin começa com um tom irônico dizendo: “O que é a depressão? É um problema biológico desencadeado por algum fator ambiental. É considerada uma doença pela Organização Mundial da Saúde – esse órgão que nunca erra e que nunca mente, né?”
Aqui, Mocellin já começa com seu jogo retórico. A retórica da ironia aplicada apela para a ideia de dúvida. “Será que a OMS não é um órgão que mente?”. Essa pergunta já fica, a princípio, instaurada na mente do espectador, pois ela geraria uma pesquisa para se obter uma resposta. Entretanto, como o espectador já está no vídeo de Mocellin, então ele terá acesso à resposta dele mais rápido. Como a pergunta também é feita em tom irônico, a resposta já está implícita. A ironia dele continua quando diz que uma psicóloga recomendou ir ao médico – mesmo se ele demorar pra te atender – mas, diz ele que ela diz, “só não vá a Cristo” – algo que a psicóloga em questão nunca disse.
De fato (e aqui cabe um parêntese) estudos em psicologia revelam um benefício positivo (perdão o pleonasmo, mas eu precisava enfatizar isso) da religião intrínseca à saúde mental. Paulo Dalgalarrondo cita diversos estudos e meta-análises que visam buscar a relação entre a religiosidade e psicopatologias, e ele aponta o seguinte:
Considerando esse tema de pesquisa de modo geral, um grande número de estudos empíricos, nos últimos cem anos, procurou identificar em diversas populações a relação entre depressão, religião e religiosidade. Koenig e Larson (2001) revisaram esses trabalhos e identificaram 101 estudos no século XX que investigaram a associação entre religiosidade e depressão. Segundo essa revisão, dois-terços (60 de 93) dos estudos observacionais encontraram prevalências mais baixas de transtornos depressivos ou menos sintomas depressivos em pessoas mais religiosas. Desses estudos, 68% também identificaram uma relação “dose-efeito”, na qual quanto maior a religiosidade menor a freqüência de depressão. De 22 estudos prospectivos, 15 identificaram que as pessoas mais religiosas no início desenvolviam menos depressão ao longo do estudo. Finalmente, três em cinco estudos de intervenção, nos quais os participantes com depressão receberam ou participaram de intervenções religiosas (orações, conselhos religiosos, etc.), indicaram que aqueles que receberam tais intervenções (mais as “intervenções seculares”) melhoraram mais rapidamente do que aqueles que só receberam “intervenções seculares” (psicoterapia, aconselhamento ou medicação).[1]
A importância de apontar isso é mostrar que existem estudos que mostram uma relação direta entre a religião intrínseca (a realmente praticada) e a melhora da saúde mental. E ninguém esconde isso.
Pr. Mocellin então começa seu ataque à depressão. Ele não nega que ela realmente exista, mas diz que não existem evidências de que ela tenha causas físicas. Aqui, ele direciona o espectador a outro vídeo, intitulado Depressão é doença?. Esse vídeo também começa com uma retórica de ironia, onde ele diz: “Nós, os homens modernos, não aprenderam (sic.) a lidar e pensar de maneira lógica – se todo mundo diz que a grama é rosa, então a grama deve ser rosa”. O estudo que ele cita, diz:
Um aspecto interessante nos estudos que examinamos foi o quão forte um efeito de eventos adversos da vida teve na depressão, sugerindo que o humor deprimido é uma resposta à vida das pessoas e não pode ser resumido a uma simples equação química.[2]
Duas coisas devem ser ditas: primeiro, aparentemente, a ciência “só presta” quando ela está de acordo com o viés de Mocellin. É interessante que ele extrapola as conclusões do estudo da seguinte forma:
Estudo diz: “...não pode ser resumido a uma simples equação química”
Mocellin diz: “...não é devido a fatores químicos”
Mas, extrapolações de lado, Mocellin ignora completamente análises do estudo “guarda-chuva” citado. Essas análises mostram o quão ignorante Modellin é no assunto. O professor Gitte Moos Knudsen, do departamento de neurologia do Copenhagen University Hospital, diz:
O principal erro [do estudo] é [...] dizer que a depressão é uma única doença com um único déficit bioquímico. Hoje, é amplamente aceito que a depressão é um transtorno heterogêneo com múltiplas potenciais causas subjacentes.[3]
O Dr. Michael Bloomfield também diz:
As descobertas desse estudo guarda-chuva realmente não são surpreendentes. A depressão possui diversos sintomas e eu creio que eu não tenha encontrado nenhum cientista ou psiquiatra sério que pense que todas as causas da depressão se devem a um único desbalanço químico de serotonina.[4]
O professor David Nutt, no Imperial College London, aponta o erro desse estudo, falando sobre os estudos analisados: “Essa meta análise cobre muito do que foi feito nos últimos 50 anos para explorar a relação do sistema de serotonina com a depressão. Infelizmente, todas essas variáveis vêm de medidas indiretas da função da serotonina ou de algo pior...”[5]. Ele também contrapõe o que o estudo diz ao final, de que não há evidência empírica para a teoria da serotonina na depressão:
Apenas em tempos recentes conseguimos desenvolver a tecnologia para medir o lançamento de serotonina no cérebro humano e, no primeiro estudo desse tipo (ainda sob análise), nós descobrimos uma capacidade reduzida de lançamento de serotonina em pessoas com depressão. Assim, descartar a hipótese da serotonina na depressão, nesse ponto, é algo prematuro.[6]
O professor Phil Cowen, da Universidade de Oxford, também aponta que “Nenhum profissional da saúde mental atualmente endossaria a visão de que uma condição heterogênea complexa como a depressão ocorre pela deficiência de um único neurotransmissor...”[7]
Com tudo isso, vemos que realmente existe uma deficiência no estudo citado por Mocellin. Mas, no mesmo vídeo, ele expressa certo ceticismo por conta do termo “teoria” e diz que os cientistas espalham teorias como se fossem “provas inerrantes”.
Creio que o uso da palavra “inerrante” seja parte da retórica do medo dele. Como cristãos, cremos em uma Bíblia inerrante. Mas, a cultura vê a ciência como inerrante! Essa afirmação cria uma relação de substituto: temos um X inerrante, não podemos crer em outro algo inerrante.
Infelizmente, para Mocellin (se essa for sua intenção, é claro), “inerrância” não é uma propriedade exclusiva da Bíblia e nem o que a torna inspirada. Como William Lane Craig explica: “Um livro pode ser inerrante sem ser inspirado. Você pode ter, por exemplo, uma lista telefônica que foi revisada minuciosamente e compilada de modo a ser inerrante. Mas isso não a torna inspirada”.[8]
Mas e quanto a alegação de “só uma teoria”? Isso é similar à estratégia de criacionistas ignorantes (não no sentido pejorativo da palavra) quando falando sobre a teoria do big bang ou a teoria da evolução. A afirmação de que tudo isso é “apenas teoria” parte de um desconhecimento do que significa uma teoria científica. Como Aaron Yilmaz explica:
… teorias nascem de um volume crucial de pesquisas com revisão de pares, normalmente sujeitas a uma análise rigorosa e uma avaliação crítica da comunidade científica por anos antes da tentativa de ser aceita. Ademais, elas nunca surgem como opiniões vindas do nada.[9]
É, assim, simplesmente ignorância igualar uma teoria científica a um “chute”.
Mocellin então faz todo um jogo de retórica irônica para desqualificar a palavra de cientistas, dizendo que a teoria da serotonina foi sugerida pela primeira vez na década de 1960 e amplamente divulgada nos anos 90. Qual a importância disso? Que, conforme diz, isso coincide com o advento dos medicamentos para a depressão. Todo o jogo retórico dele é usado para convencer o ouvinte de que os estudos surgiram para vender medicamento, basicamente.
A lógica dele é falha, pois é uma demonstração de raciocínio circular: ele assume que a motivação para os estudos seja a venda dos medicamentos seja e explica a existência dos estudos dessa forma. Mas ele não considera que há uma explicação bem mais simples: o medicamento foi popularizado quando os estudos foram amplamente divulgados porque as pessoas, vendo o resultado dos estudos, começaram a buscar mais. Ou, ao ver o resultado dos estudos, os médicos começaram a recomendar mais esses medicamentos para *surprise surprise* ajudar seus pacientes. Se você é um médico tentando ajudar um paciente e uma das explicações para o problema dele é a falta de serotonina, então você faz o que? Isso mesmo! Dá algo que crê resolver o problema. Todo o problema da lógica de Mocellin gira em torno de que ele pressupõe a verdade de sua conspiração e tenta interpretar os fatos a partir dela, o que é raciocínio circular.
Ele tenta provar que os cientistas e médicos não são confiáveis citando um artigo que mostra cientistas admitindo que mentiram sobre o açúcar, e usa isso pra falar que, portanto, todos os cientistas e médicos devem gerar desconfiança. Mas, isso é uma demonstração de falácia da composição: não é porque parte dos cientistas e médicos são picaretas que todos os cientistas e médicos o são. Seria como se eu argumentasse que só porque parte dos pastores são picaretas, portanto todos os pastores o são.
Também é uma associação preconceituosa dizer que todo um corpo de profissionais é desonesto por causa de alguns. Pela lógica de Mocellin, eu posso muito bem criar a conspiração de que os cientistas do estudo que ele mesmo citou querem invalidar a teoria da serotonina para fingir haver outra causa e vender outro medicamento no futuro. Ou que ele mesmo está usando esses estudos para vender seu curso sobre como a Bíblia lida com a depressão.
Para ser justo, ele “humildemente” fala sobre como os cientistas são homens falhos que podem interpretar os fatos errados ou distorcer os fatos. Mas, ele não aplica o mesmo critério a si mesmo: porque eu não devo crer que ele, como homem falho, não está interpretando os estudos errado (e, de fato, ele está) e até mesmo a Bíblia errado?
Ele, então, muda o foco do argumento para falar sobre como coisas do cotidiano são tratadas como transtornos e que isso é muito confortável para a psicologia e psicoterapia. Isso é uma má representação dos fatos. O fato de que existem terapeutas picaretas que dão um diagnóstico errado para abusar de seu paciente não significa que o transtorno diagnosticado seja uma invenção da industria terapêutica e farmacêutica. Ele cita Allen Frances para fazer seu ponto, mas parece que não o leu direito. O próprio Frances diz o seguinte:
Alguns críticos radicais da psiquiatria se apegaram a suas ambiguidades definitórias para argumentar que a profissão nem deveria existir. […] Essa ladainha só pode ganhar crédito de teóricos de sofá sem experiência real de ter, tratar ou conviver com uma doença mental. Embora difícil de defini, um transtorno psiquiátrico é uma realidade dolorosíssima para quem sofre e para quem ama alguém que sofre. Voltar ao normal, conforme uso a expressão, não nega o valor do diagnóstico e do tratamento psiquiátrico. Ao contrário, é um esforço para manter a psiquiatria fazendo o que faz de bom dentro dos limites apropriados.[10]
Portanto, o autor não está dizendo que os transtornos são inventados a partir de problemas comuns, mas que os diagnósticos são realizados de forma abusiva. Mocellin fala então que a os problemas das pessoas são diagnosticados como algo que vem de um transtorno e “não do pecado, como diz a Bíblia”. O erro dele aqui é pressupor que um exclui o outro: um transtorno pode facilitar algum tipo de comportamento pecaminoso - como é o caso do transtorno de personalidade narcisista, por exemplo.
Voltando ao vídeo inicial (onde ele responde à psicóloga), ele tenta invalidar a psicologia como ciência comparando com matemática. Yup, isso mesmo.
Aparte de toda a discussão acerca da validade científica da psicologia (que realmente existe), ele parece confundir uma leitura cosmovisional dos dizeres da psicologia com o que a psicologia em si presume. O fato de que os psicólogos ateístas dizem que o corpo é tudo o que existe com impulsos eletromagnéticos não implica que você não possa ler a mesma teoria pressupondo que o corpo humano com impulsos eletromagnéticos existe com uma alma.
Ele prossegue falando de “cura da depressão”, dizendo que os cientistas querem tratar o corpo físico sem considerar a alma. Mas absolutamente nada impede um indivíduo de tratar o corpo para que a alma consiga interagir corretamente com ele. Filósofos da mente que creem no dualismo corpo-alma geralmente fazem a analogia de um pianista com seu piano: se o piano estiver faltando teclas, então o pianista não conseguirá toca-lo direito. Similarmente, a alma não conseguirá agir no corpo se ele estiver com algum tipo de problema físico.
Ele cita alguns textos bíblicos descontextualizados para argumentar que cristãos não devem se sujeitar a crer nos médicos em questão. Mas ele falha no uso de suas próprias passagens. É óbvio que o texto que menciona a situação de Elias não cita remédios e problemas físicos: o texto foi escrito no antigo Oriente Próximo, onde os autores não tinham o conhecimento científico que temos hoje. Exigir esse tipo de conhecimento anacronistico é, no mínimo, desespero intelectual. Ele também falha em reconhecer que não é porque Deus cura Elias que ele vai agir da mesma forma com todos. Jesus curou cegos e paralíticos, mas todos os cegos e paralíticos devem apenas ter fé e serão curados?
Há uma coisa que ele fala no começo do vídeo que eu deixei para o final. Ele diz que cristãos que aceitam os tratamentos psiquiátricos estão achando que Cristo não é suficiente. A psicóloga cristã Larissa Lima, ao falar da suficiência da Bíblia, diz o seguinte:
Com a premissa de que a Bíblia é suficiente, alguns cristãos dizem que não precisamos recorrer a psicólogos quando se fala de saúde mental. Mas é preciso lembrar que a Bíblia é suficiente para aquilo que ela se propõe, para assuntos relacionados à salvação das nossas almas.
[…]
A Bíblia não se propõe a tratar um transtorno mental, como também não se propõe a curar um câncer. Essa não é a função dela. Mas a Palavra de Deus nos dá princípios e diretrizes para ler a ciência e filtrar tudo o que estudamos e direcionar nossas atitudes.[11]
Assim como a Bíblia, Cristo possui uma suficiência com propósito. Cristo pode curar a depressão com um medicamento, assim como pode curar o câncer com algum tratamento. Menosprezar tratamentos físicos em prol de supostos tratamentos sobrenaturais é uma distorção da forma como Deus age no mundo. Além disso, os autores bíblicos não distinguiam o natural do sobrenatural – eles viam atos naturais como algo tão sobrenatural quanto um milagre.
Em suma, a lógica de toda a argumentação de Mocellin é falha, falaciosa e, muitas vezes, baseada em uma representação errada dos estudos citados e de sua validade. Ele não interage com estudos contrários à sua conspiração. De fato, ele trata todos como estudos vendidos que fazem parte de um grande esquema global pra vender remédios – algo que, infelizmente, convence pessoas menos informadas e as leva para um buraco pior ainda.
[1] DALGALARRONDO, Paulo. Religião, psicopatologia e saúde mental, Porto Alegre: Artmed, 2008. p. 184-185.
[2] Apud. https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/agencia-estado/2022/07/22/depressao-nao-e-causada-por-baixo-nivel-de-serotonina-diz-estudo.htm?
[3] expert reaction to a review paper on the ‘serotonin theory of depression’. 20 de Jul. 2022. Disponível em <https://www.sciencemediacentre.org/expert-reaction-to-a-review-paper-on-the-serotonin-theory-of-depression/>. Acesso 18 de Out. 2022.
[4] Ibid.
[5] Ibid.
[6] Ibid.
[7] Ibid.
[8] REASONABLE FAITH. Doctrine of revelation (Part 5): the properties of inspiration. 10 de Dez. 2014. Disponível em <https://www.reasonablefaith.org/podcasts/defenders-podcast-series-3/s3-doctrine-of-revelation/doctrine-of-revelation-part-5>. Acesso em 19 de Out. 2022
[9] YILMAZ, Aaron. Deliver us from evolution?: a christian biologist’s in-depth look at the evidence reveals a surprising harmony between science and God, Sehnsucht Publishing, 2019, p. 54
[10] FRANCES, Allen. Voltando ao normal: como o excesso de diagnósticos e a medicalização da vida estão acabando com a nossa sanidade e o que pode ser feito para retomarmos o controle, Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017 (grifo meu).
[11] LIMA, Larissa. Psicologia – série primeiros passos em cosmovisão cristã, Instituto Schaeffer de teologia e cultura, [2020?], p. 10.